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9.2.06 

VírGula (Lisboa)

Um ponto ao VírGula

Chamar VírGula a um restaurante é tão imaginativo como chamar EsCarro a um stand de automóveis, BonaCheira a uma perfumaria, ou InVeja a um oculista. Ou contraprova a uma coluna de crítica gastronómica... É forçar o double entendre com aquele G maiúsculo, renunciando à subtileza e impondo com o nome o prazer que lá se há-de satisfazer. Ou não.
O espaço do VírGula, como a clientela, é sofisticado, urbano e “giro” com uma única mesa patrão-secretária a confirmar a regra. Dir-se-ia, como nas revistas da moda, que é um ambiente clean, não fosse o cheiro fétido a esgoto no canto posterior direito da sala, que a espaços alastra a toda ela.
O arrivismo do branding não tinge felizmente nem a comida nem o serviço. Este, com os sectores - do bengaleiro à cozinha - a jogarem ligados e próximos, como nas equipas de Mourinho, é discreto e quase exemplar, ultrapassados os amadorismos dos primeiros meses.
A comida é boa, o chefe seguro. Os pratos têm sabor coerente, as técnicas são seguidas correctamente (com excepção da massa encruada e pouco estaladiça do folhado de coelho amuse-bouche).
A sopa de santola com crosta de massa folhada desperta sentimentos contraditórios (touché, chefe Bertílio?). A falta de densidade do caldo onde nadam nacos da santola é compensada por um sabor concentrado e pelo aconchego dos pedaços da crosta que se lhe vão misturando. Resultado arrojado, sem nunca parecer torrada molhada no chá da avó.
As molejas de vitela com uns legumes para enfeitar (e desenjoar) estavam soberbas, tostadas por fora, cremosas por dentro, em cubos altos (a milhas das servidas no XL).
Na empada de bacalhau, com a massa no ponto e o recheio tipo brandade, deixa-se o sabor do peixe tomar o comando, bem escoltado por legumes também saborosos, salgados e rijos.
A bochecha de vaca em redução de vinho tinto e boletos joga três sabores fortes que não se sobrepõem, antes se complementando na boca, e exige um vinho complexo para acompanhar (o Esporão Reserva 2002 podia ter feito melhor, para os 35€...).
“E sobremesa, vão desejar?”
Um leite-creme acompanhado de sorvete de tangerina, ele próprio também com essência de tangerina, estava bastante bom .... para leite-creme com sabor a tangerina acompanhado de sorvete da mesma. Ou seja, inesperadamente sabia bem e a tangerina não empestava. Dar sabor ao leite-creme, admitamos, é um sacrilégio que podia ter saído muito caro... “Bertílio, seu pai morreu nesse número.”
Já a tarte de figos macerados com gelado de alfarroba era tão enfadonha e argamassenta que apenas se desculpa por saudosismo de um tradicional Almancil longínquo. O sentimento nunca é bom conselheiro.
Cafés não obrigado, traga só a continha, na qual se dispensava o cross-selling com o cartão do banal Chafariz do Vinho: “é que um dos nosso sócios tem lá uma quotazinha, sabe”. Pois.
O VírGula é, mesmo assim, um restaurante honesto, arriscadamente próximo da fronteira do pretensioso e ostensivo, mas sem a ultrapassar. Para já.
É tão honesto que escancara ao respeitável público uma cozinha onde os pratos são retocados com as mãos, e qualquer legumezito ou camarão que esteja a mais é imediatamente comido, ao que se segue um rápido chupar dos dedos culpados.
Até simpatizo com esta cozinha-de-proximidade de dedos lambidos, em que a brigada na cozinha beija por esse meio as bocas dos clientes na sala. Mas se muito boa gente visse tal coisa, saía sem pagar para não mais voltar. Perdia uma boa refeição, mas poupava 60 euros por pessoa.

Melhor: O serviço e as molejas de vitela
Pior: O cheiro a esgoto e a tarte de figos.

Pontuação: * (Bom)
(Sem estrela - De incomestível a come-se; * - Bom; ** - Muito Bom; *** - Excelente; **** - Excepcional)

VírGula, Rua Cintura do Porto, n.º 16 Armazém B, Lisboa (Cais do Sodré), 213 432 002, 13h00 - 15h30; 20h00 - 22h30 (cozinha), encerra ao Domingo, cartões débito e crédito, 50€/pessoa.


Lourenço Viegas (contraprova@gmail.com)

Contraprovador

  • Lourenço Viegas, 54 anos, é geólogo e crí­tico gastronómico. Colabora semanalmente na Time Out Lisboa. Nasceu em Lourenço Marques e vive no Ribatejo. Tem duas filhas.
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