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9.3.06 

Café Império (Lisboa)

Fetiche Império


Há restaurantes bons e restaurantes maus. E de cada um destes há aqueles de que gostamos e aqueles de que não gostamos. Quando damos por nós a gostar muito de restaurantes com má comida, serviço rude e ambiente deprimente, entrámos no campo da parafilia gastronómica. Só isto pode explicar que ainda haja indefectíveis do Café Império, na Almirante Reis (localização a que os ingleses chamariam uma collocation).
O Café Império é a experiência mais deprimente do mundo. Tão puramente deprimente que já nem lá vão os ícones da fossa: pais divorciados ao Domingo com os meninos antes de os depositarem na casa das exs, ou mães à quarta-feira com os seus pupilos fardados (que agora preferem o McDonalds e o Colombo).
No Café Império come-se bife. Bife à Império. Os empregados atacam a mesa com a ementa na mão na esperança de a não abrirem, apenas de saberem se é lombo ou vazia, bem, médio ou mal, e se vem com ou sem ovinho. Para beber, também são imperiais.
Com tão farfalhudo exército, não se brinca. Como dizia um amigo meu a propósito da mais antipática tabacaria de Lisboa (nome omitido), no Império não podemos falhar. Os bigodes não nos insultam como na Mexicana, nem nos desprezam como na Brasileira. Apenas exigem rigor e estrutura: o pedido na ordem e timings certos, sem enganos, sem invenções, sem “ah afinal pode ser em vez das batatas, ovo no bife de vazia que era o médio passado, mas sem sangue”.
O bife vem presto, com molho de manteiga, único na consistência e sabor, com um final de boca lácteo persistente, com fortes aromas a ranço e caramelo, e leve toque a café.
As batatas fritas são péssimas. Falsas. Muito falsas, a saber a omelete, filhas do mesmo óleo que pegou ao serviço ainda jogava o Eusébio.
Mas se a menina quiser, tem um bacalhau à minhota, sobre-demolhado, insosso e com umas batatas mal fritas ensopadas em óleo fula.
Mais vale a náusea do bife ao vazio palatal do bacalhau, querida. A experiência Império quer-se forte, com recuerdos de gordura na roupa e perdurantes alucinações gostativas amanteigadas, para que se não esqueça a melancolia do momento.
No Império, até o bife vem triste, a esconder-se no molho, à espera de que tudo passe muito depressa. Mas a clientela não. Prolonga a agonia inebriada naquela sala imperial, hipnotizada pelo fosso imenso onde pairam fantasmas sobre um self-service moribundo e um piano mudo caído a um canto.
Tudo a lembrar que a vida não é fácil, que afinal a sessão na IURD mesmo ali ao lado não foi tão má assim e que o meu mais velho há-de largar a droga se Deus quiser e o pastor Gerson ajudar.
E como para amarguras basta tudo o resto, a mousse de chocolate é boa. Parece caseira, mas ainda ninguém se atreveu a perguntar.
O Império é dos melhores restaurantes-fetiche. Restaurantes onde se come objectiva e consistentemente mal, a um preço relativamente elevado. Restaurantes que desafiam as leis do mercado não falindo, nem mudando de gerência, nem inventando um buffet de saladas, ou ementas temáticas.
E todos os restaurantes parafílicos têm um sabor dominante que se consegue salivar a qualquer hora, em qualquer lugar, fazendo-nos querer voltar a ser maltratados.
Dizia o Tom Jobim que “viver no exterior é bom mas é uma merda. Viver no Brasil é uma merda mas é bom”. Ir ao Império é como viver no Brasil.


Melhor: A regularidade e o carácter único da experiência.
Pior: As batatas fritas.
Pontuação: Sem estrela
(Sem estrela - De incomestível a come-se; * - Bom; ** - Muito Bom; *** - Excelente; **** - Excepcional)


Café Império, Av. Almirante Reis n.º 205, Lisboa, 218 476 052, 12h00 – 23h00 (restaurante / bifes), não encerra, cartões débito e crédito, 18€/pessoa.

Nota: desde a publicação deste texto, o Café Império foi amplamente renovado.

Contraprovador

  • Lourenço Viegas, 54 anos, é geólogo e crí­tico gastronómico. Colabora semanalmente na Time Out Lisboa. Nasceu em Lourenço Marques e vive no Ribatejo. Tem duas filhas.
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