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24.3.06 

A Travessa (Lisboa)

Travessa sem saída


Na Travessa, a comida é mediana, o sítio bonito e os preços demasiado altos – a fórmula mágica de qualquer restaurante lisboeta para estar na moda e atrair caras conhecidas. Restaurantes para gente a quem a fama tirou o sentido crítico sobre o que lhes dão a comer, desde que o sítio não fique mal com o novo vestido e na mesa ao lado estejam colegas famosos. Ver e ser visto.
A Travessa começou bem: numa travessa (das Inglesinhas), com boa comida e sem ser “A Travessa”. Eram “as belgas”, metonímia inspirada na nacionalidade das donas.
A mudança para o Convento das Bernardas – passo maior do que a perna - obrigou à invenção e difusão de um conceito: a cozinha luso-belga (?!). No entanto, é conceito que vem depois da coisa e a comida da Travessa é a mesma d’As Belgas. Mas pior e mais cara.
Mal nos sentamos, começam a bombardear-nos, sem apelo nem agravo, com entradas: uns mexilhões com vinagrete a esconder a falta de frescura (voilà, les moules!); um caldo de ovas que lembrou as sopas de sustância que a minha avó me fazia quando estive tuberculoso; umas boas fatias de tomate temperado (!); um bom queijo de cabra panado com compota; e uns excelentes ovos mexidos, bem húmidos, em panela de cobre com cogumelos selvagens, a merecerem ser içados a prato principal. Tudo acompanhado por um bom pão que dizem ser feito ali, reforçado na hora certa.
Depois os pratos. Primeiro, os peixes:
Na raia au beurre noir conseguiram fazer bem o molho (supostamente o mais difícil) e mal a raia (bastava cozê-la). É que não pedimos a raia mal passada, com sangue junto à espinha.
Os lombos de peixe-galo estavam no ponto, tostados por fora, suculentos por dentro (mas sem sangue!), com um molho amanteigado em demasia para alguns bicos.
Nas carnes, o onglet aux echalottes - um old timer do menu - estava bem feito (o que não exige muita ciência), com batata frita às rodelas.
“Por acaso, também temos um pernil de pata negra que não está na lista”. Surpresa era não haver, já que na Travessa o pernil é há largos anos um constante fora-de-carta, que nos é sussurrado sempre como se fosse a primeira vez. Um fora-de-carta (se é que o conceito se justifica) tem de ser bastante melhor do que os pratos do cardápio. Mas o pernil da Travessa está cada vez pior, de porco muito congelado, daqueles das promoções familiares dos hipermercados, que vem para a mesa sem ver tempero...
E a ornamentação dos pratos com claves de sol?! Já nem na TeleCulinária...
A ladear, em cada prato, uma cenoura e dois espargos verdes cruíssimos e sem qualquer sal, de um verde desmaiado de quem anda a enfeitar pratos desde o Natal.
Nas sobremesas, a coisa não melhorou. A mousse de chocolate branco tinha demasiadas claras, ficando com uma textura demasiado fluffy, tipo soufflé de ar. Melhor estava o praliné, com a consistência e sabores certos....
Além de comida, os restaurantes servem carácter – e o da Travessa já foi melhor. A simpatia dos empregados é contrastada pela antipatia do dono/chefe de sala, que trata de modo desigual caras conhecidas e caras desconhecidas (uma saloiice cada vez menos comum), e tem com os empregados maneiras bruscas e securitárias quando estes se prolongam numa mesa (não conhecida) em conversa amena, não se escusando ainda a discutir com a dona à frente dos clientes.
O mau gosto não fica por aqui. Em termos comerciais, a Travessa não é um restaurante totalmente honesto – tem uma péssima relação com o dinheiro. Frequentemente há na conta itens não pedidos, nem consumidos (e a julgar pela cara dos empregados quando alertados – e pela ausência de pedidos de desculpas – deve ser engano rotineiro). Também não é nada honesto não vir logo a facturinha, como é de lei. E há os pratos fora de carta, que são anunciados sem o preço, já para nem falar nas entradas que são postas em cima da mesa sem serem solicitadas, nem o seu preço anunciado. E aquele aviso de desconto de 5% para quem pagar em dinheiro ou cheque já não se usa, nem se justifica. Técnicas de restauração da Feira Popular, a 50 euros por cabeça.
Uns vão à Travessa para ver e ser vistos. Outros vão para comer e são comidos.

Lourenço Viegas (contraprova@gmail.com)

Melhor: Os ovos mexidos com cogumelos selvagens.
Pior: A raia ensanguentada.
Pontuação: Sem estrela
(Sem estrela - De incomestível a come-se; * - Bom; ** - Muito Bom; *** - Excelente; **** - Excepcional)

A Travessa, Tr. do Convento das Bernardas, 12B, Lisboa, 213 902 034, 13h00 – 14h30; 20h00 – 23h30 (cozinha), encerra Sábado (almoço) e Domingos, cartões débito e crédito (suplemento 5%), 50€/pessoa.

Contraprovador

  • Lourenço Viegas, 54 anos, é geólogo e crí­tico gastronómico. Colabora semanalmente na Time Out Lisboa. Nasceu em Lourenço Marques e vive no Ribatejo. Tem duas filhas.
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