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2.6.06 

Valle Flôr (Lisboa)

Valle-a-pena?


No princípio do século, as modistas famosas de Lisboa eram francesas. Também os primeiros cozinheiros sofisticados da capital foram gauleses. É o caso de Aimé Barroyer, do Pestana Palace, palácio Valle Flôr, ex-Carlton de Lisboa. Até à chegada do Eleven, era mesmo o único restaurante de cozinha internacional e sofisticada de Lisboa, com preços condizentes. À francesa.
Dizia o Eça que a civilização chegava da Europa e nos ficava curta nas mangas. E a comida francesa feita por franceses em Lisboa?
Começou a ementa de Primavera com um folhado de queijo com nêspera e umas flores comestíveis no prato (é detestável a moda das flores comestíveis....). É a época da nêspera (cozinha saison, bien sûr) e é milenar a tentação de combinar este estranho fruto com comida a sério (um irmão da mãe das minhas filhas, a propósito de modernices surreais, fala sempre num bacalhau com nêsperas...). Mas a nêspera tem dificuldade em saltar de um pátio de casa de porteira que tresanda a urina de gato para o prato de um dos mais luxuosos hotéis lisboetas.
Depois “o insólito” (sim, era assim que estava identificado na lista, secundado pelos criados): um creme de espargos com uma fatia fina de batata doce e “umas bolinhas de ervilha injectadas com caviar por um processo especial”. Insólito de facto foi as ervilhas (?) saberem a nada, apenas desconcertando o creme de espargos muito saboroso.
Segue-se o melhor prato: lombo de sardinha numa cama de xarém e espuma de queijo da serra. Aqui gemeu-se. A sardinha (que é linda) mantém uma textura e um sabor que poucos peixes aguentam, uma atitude chineleira em pratos de luxo, a conjugar com amêijoas num xarém de moagem grossa cozido num caldo de peixe muito intenso, ladeado por uma espuma de queijo da serra que liga bem com o milho e que não abafa o peixe, dando ao prato uma boca láctea e ácida (a espuma de queijo torna um prato redondo num prato triangular – um dia explicarei melhor esta ideia...).
Um salmonete que apenas merece referência por ter sido servido com talheres de carne, o que talvez se justifique dada a dureza diamantífera da fatia de pão torrado onde vinha servido. Nada acrescentava o recheio de caracóis.
Na corvina grelhada com crosta de camarão e sapateira, o destaque vai para a erva-benta na crosta, que abria o sabor, amentolando o paladar – como se no meio de uma colher de açorda de marisco tostadinha por fora topássemos um rasto de Dr. Bayard.
Outro bom prato tinha o nome literário de “o porco foi aos morangos”, o preferido do empregado (se fosse um tipo mal disposto, acrescentava que ninguém lhe tinha perguntado): entremeada, lombo confitado e plumas, acompanhados por um fresquíssimo caldo com queijo branco, manjerona, alho e morangos confitados, tipo gaspacho com os morangos aos cubinhos a fazerem as vezes do tomate. Não fosse o porco com sangue, estaria excelente. Os morangos cozinhados sobem ao patamar gustativo do alho, cebola e coentros, combinando bem com o suíno, reforçando o seu sabor plebeu.
Sorvete de coca-cola e ravioli em sopa de erva-príncipe. Resultou bem aquela massa grossíssima (seria de propósito?) sem sabor, na infusão tépida, cortada pelo doce sabor da compota que a recheava. O sorvete de coca-cola abriu caminho na canalização para um soufflé de chocolate e menta e sorvete de cacau e de menta, que apenas no sorvete de cacau estava melhor do que o óbvio efeito after-eight. No cacau, a homenagem aos antigos donos do palácio e às suas vendilhices equatoriais.
Uns petit-fours banais e a contona a rondar os três dígitos por pessoa – que pouco importa à clientela internacional ou ao Visa lá da empresa. O serviço é bom, mas nada que se compare com o profissionalismo militar de um qualquer hotel de estatuto equivalente em Paris ou Londres. Talvez por isso tardar a michistar.
No Valle Flôr servem uma comida muito pensada, bem elaborada, que por vezes surpreende, mas que raramente toca no ponto-g do comensal. Quando isto acontece, solta-se um gemido abafado, uma pausa na cadência normal de deglutição, a vontade de parar e mastigar mais devagar, o instinto animal de cheirar o que se está a comer, e por vezes a verbalização nos primeiros cinco-sete segundos de um hummm eh pá isto está muito bom.
Só neste momento o cozinheiro sabe que fez magia. No Valle Flôr há satisfação generalizada e alguns gemidos. Mas não é uma experiência orgástrica.


Melhor: Sardinha com xarém e espuma de queijo da serra.
Pior: Insólito caviar de ervilhas. O ambiente demasiado hotel.
Pontuação: **
(Sem estrela - De incomestível a come-se; * - Bom; ** - Muito Bom; *** - Excelente; **** - Excepcional)

Valle Flôr (Hotel Pestana Palace), Rua Jau, 54, Lisboa, Tel: 213 615 600, 12h30 – 15h00; 19h00 – 22h30, não encerra, aceita cartões, 85€/pessoa.

Contraprovador

  • Lourenço Viegas, 54 anos, é geólogo e crí­tico gastronómico. Colabora semanalmente na Time Out Lisboa. Nasceu em Lourenço Marques e vive no Ribatejo. Tem duas filhas.
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