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15.6.06 

Bull & Bear (Porto)

Bullish!

As mulheres mais fascinantes que conheço são aquelas com larga volatilidade de sedução. Discretas a maior parte do tempo, disparam sorrisos lascivos quando menos se espera ou uma piada inteligente no meio de uma conversa banal. A cozinha de Miguel Castro e Silva faz tudo isso. Em cada prato.
Bull & Bear, explicaram-me, são expressões que descrevem a tendência dos mercados bolsistas, bull quando sobem, porque o touro marra para cima, bear quando descem, porque o urso dá patadas para baixo (é verdade, isto é um jornal de negócios!). E o restaurante é à beira da bolsa de derivados do Porto, daí o nome.
No Bull & Bear, os pratos levam ao limite o compromisso entre normalidade e excepcionalidade. Um simples empadão de pato, em que o puré de batata, caseiro e com uma boa dose de natas, aparece leve, discreto e lácteo, ligeiramente tostado por fora, como que embrulhado em celofane, mas quando se chega ao pato, uns centímetros abaixo, não é o pato-tipo-frango do arroz de pato, recozido e que só é salvo pelo chouriço – é pato tostado, pato-tipo-leitão, ou tipo-pequim, talvez confit, quebradiço e húmido. E quando se juntam os dois, é como andar de TGV numa planície.
No trio de peixes, a vieira cozinhada no estritamente necessário e admissível (é que agora, com a banalização das vieiras, qualquer restaurante tem na carta a sua maneira de destruí-las), um atum seared por fora, cru por dentro (demasiado salgado?) e um robalo marinado com o anisado do funcho a fazer sobressair o mar. Também nos peixes, uma pescada prudente, com uma crosta de broa e de azeitona que içava o prato um pouco acima na escala do atrevimento - que era apenas verdadeiramente encontrado na emulsão verde onde poisavam (na maior parte dos restaurantes, crosta de azeitonas equivale a transformarem qualquer prato em tapenade).
O risotto de polvo é um upgrade do arroz de polvo em tigela de barro: retiram-se os coentros, troca-se o trinca por arborio e atinge-se uma sofisticação digna – que não substitui o original, mas não peca por atrevimento. O polvo, ao quebrar, liberta o mar, que faz o risotto abandonar aquele marasmo característico. Talvez o risotto estivesse demasiado quente, como alguns dos outros pratos (Castro e Silva não domina a temperatura como Sobral).
Mas o que mais surpreende no Bull & Bear é o atrevimento de fazer coisas simples no limiar da perfeição. Dois exemplos:
Terrina de foie-gras. Uma fatia apena, não demasiado grossa, caseira, excelente, com os sabores de madeira a serem envolvidos na untuosidade do pato. Ao lado, uma pequena porção de molho cumberland, acidulado do sumo e zesto de laranja e limão envolvidos na geleia de groselha, como um aguilhão a picar o pobre pato. E o porto do molho cumberland ia buscar (como dizem os decoradores) o bouquet da terrina e pedia um gole do tawny servido a acompanhar – numa bulhonização do sauternes.
Xarém com berbigão (a lembrar um excelente, mas de mexilhão, comido numa invulgar noite de Dezembro de 2003, no merecidamente falido Café na Praça). Um xarém na moagem e cozedura certas, sem grumos, com o cebolinho a preparar para o aluvião de mar em cada berbigão. Está lá na carta, a cinco euros (!), com uma função pedagógica. Um atrevimento, como que a dizer “isto é do melhor que tenho aqui, mas não posso pedir mais porque ainda não estais preparados para o compreender ou apreciar”.
Castro e Silva faz a sua cozinha à sua maneira: por isso não é bajulado pela clique que escreve sobre comida e o seu está longe de ser o restaurante de eleição dos portuenses. Como se isto não fosse motivo de orgulho suficiente, já passou por uma crítica de A. A. Gill (o Vasco Pulido Valente dos críticos gastronómicos, do The Times), em que, à sua maneira, falou pouco do restaurante Tugga e muito mal de outras coisas (no caso, de Portugal e nem sempre com total impropriedade). Soube abandonar rapidamente o projecto(!) Tugga que, verdade seja dita, nunca passará de banal na Londres de Blumenthal, e que foi entregue, dizem, ao Olivier (o que já faz sentido).
Agora aliou-se a interesses franceses em projecto hoteleiro no Douro – o mesmo é dizer que vem aí chuva de estrelas Michelin. Vai ser um “foge cão...”...
Ao fim de pouco mais de quinze anos, Castro e Silva é o melhor dos chefes portugueses, e dos melhores do resto do mundo. Com uma cozinha masculina, obsessiva e solitária, suprime o acessório e despreza o joga bonito. Com a obsessão pelo essencial de quem chega tarde a uma vocação que é mais sua do que dos outros.


Melhor: Tudo.
Pior: Temperatura, por vezes demasiado elevada, da comida.
Pontuação: ***
(Sem estrela - De incomestível a come-se; * - Bom; ** - Muito Bom; *** - Excelente; **** - Excepcional)


Bull & Bear, Av. da Boavista, 3431, Porto, Tel 226 107 669, 12h30 – 15h30; 19h30 – 23h00, encerra Sábado almoço e Domingo, aceita cartões, 50€/pessoa.

Contraprovador

  • Lourenço Viegas, 54 anos, é geólogo e crí­tico gastronómico. Colabora semanalmente na Time Out Lisboa. Nasceu em Lourenço Marques e vive no Ribatejo. Tem duas filhas.
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