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20.2.09 

Coelho da Rocha (4/6)

Pratos do dia

Seguindo o cânone tradicional da crítica gastronómica portuguesa (onde pontuam verdadeiros Anaximandros), os próximos parágrafos seriam dedicados à descrição geográfica do lindo bairro de Campo de Ourique, sua toponímia, sua gente e seus costumes. Impossível. Campo de Ourique fascina-me tanto como um puzzle de 5.000 peças dos anjinhos do Botticelli. Não tem metro. Não tem lugares para estacionar. Tem caca de cão. Tem, a qualquer hora, engarrafamentos lentos. Lojas decrépitas ou pretensiosas. Uma lógica de circulação comparável à medina de Fez. A sua toponímia cheira a caciques com nome de rua, de regimes passados, pais, ou irmãos de algumas das múmias que se passeiam, com cãezinhos, que trémulos e de pelo rafado, lá vão expelindo mais umas caquitas.
Talvez seja do tempo (ou da falta dele) que enquanto refeiçoava no Coelho da Rocha, ali em Campo de Ourique, não me saia da cabeça a voz dela a querer saber a opinião sobre pratos do dia.
Há quem ache que sim, que se deve pedir sempre os pratos do dia, e há quem diga que não, que se deve evitá-los. Sobre isto não tive, até agora, opinião. A questão dos pratos do dia não era para mim uma questão. Há coisas que só nas mentes mais pequenas – ou nas maiores – são questões. Mas não é possível, Lourenço, você que tem ideias sobre tudo, não ter opinião sobre os pratos do dia. Tentei fazer, para ganhar tempo, para mudar a conversa, para que se calasse, sei lá, uma chalaça, bem boa por acaso, pratos do dia? Não sabia que vendiam pratos no Dia, mas são de certeza piores do que os do Lidl. Mas chega-se a uma idade em que nos devemos ir preocupando não com as questões sem resposta, mas com as respostas sem questão.
Regurgitando sobre a questão dos pratos do dia percebi que depende. Depende dos restaurantes, das cartas. Há-os onde nunca dou aos pratos do dia mais do que uma olhada rápida, sobranceira. Mas há restaurantes em que a carta-carta, aquela que não muda, me assusta. Está escrita com uma letras – ou solta uma energia – como quem diz, há anos que ninguém pede nada daqui, veja antes os pratos do dia no papelucho preso com um clip escrito com letra de guarda-livros zeloso. É assim, com este critério de navegação à vista, que lá vou nuns sítios pedindo pratos do dia, noutros pratos do ano.
No Coelho da Rocha são os pratos do dia. Normalmente à vista de quem passa, em travessa ou tabuleiro. Um pargo forte, digno, de boa lasca, bom tempero, servido generosamente. Um empada de perdiz, com o o bicho bem cozinhado, redondo, epicée, sem aguadilha, tudo ligado. E aquele leitão de mastigar com a língua, leitinho da alma, com molho suave. Bons grelos na empada, boas batatas no leitão.
Encharcada de ovos de sobremesa doce. Serviço agri-doce, com os açúcares a aumentarem na medida da frequência.

**** Bom
Coelho da Rocha

Contraprovador

  • Lourenço Viegas, 54 anos, é geólogo e crí­tico gastronómico. Colabora semanalmente na Time Out Lisboa. Nasceu em Lourenço Marques e vive no Ribatejo. Tem duas filhas.
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