« Home | Adega dos Lombinhos (5/6) » | Porto de Abrigo (4/6) » | Il Sorriso (4/6) » | Everest Montanha (4/6) » | Alentejo nas Docas (2/6) » | Colina (3/6) » | Taberna 2780 (5/6) » | Saldanha Mar (2/6) » | Zucchero (3/6) » | Great American Disaster (1/6) » 

22.10.08 

Cabeça de porco

O senhor tem cabeça de porco?

Cabeça. Há poucas coisas mais reconfortantes do que a chegada do frio e da crise. Claro que em Portugal e por estas bandas a crise e o frio são sempre de camarote. Mas permitem, com a sua aportada, ainda assim, uns laivos de aconchego. São – a crise e o frio – a desculpa perfeita para deixar de lado os restaurantes de Lisboa, mal calafetados, com a cabeça no cepo do gume da poupança. Por falar em cabeça: comida em tempo de crise é uma cabeça de porco. Uma cabeça de porco alimenta quatro bocas humanas adultas. É um prato pesado, untuoso, rico, aromático, bruto e requintado. Um prato que nos coloca perante os dilemas da alimentação carnívora quando olhamos para o bicho, ali sem roncar, nem cheirar à bosta que trás agarrada enquanto vivo. Na sua pureza de suíno cordeiro, de olho semicerrado.
Compra. É a parte mais fácil. Dois em cada três talhos têm cabeça de porco, porque os porcos além de lombos e de costeletas têm todos uma cabeça. É entrar e dizer “bom dia/tarde, quero uma cabeça de porco por favor”. Evitar perguntar “tem cabeça de porco?” porque normalmente os talhantes têm um cachaço proeminente e pode parecer daquelas piadas do Tonecas. Pesa cinco quilos e custa cinquenta cêntimos por quilo (não se deixe enganar). Exija as orelhas (a língua eles normalmente vendem à parte)
Preparação. Na cabeça de porco o único truque é lavá-la bem lavadinha (lavadinha, toda crua). Como uma criança antes da primeira comunhão: nariz, boca, ouvidos imaculados. Tirar os pêlos sobrantes com uma gilette (ou com um maçarico de queimar o leite-creme, por exemplo). Mas prefiro a gilette, a cabeça do porco pousada numa mesa ganha aquela inclinação da cabeça do barbudo em cadeira de barbeiro, um papo para o ar todo vulnerável, quarenta e cinco graus de oferecimento. E de cima, por trás, lá se vai rapando este ou aquele pêlo, lápide aqui foi um animal, sem espuma de barba nem aftershaves (pode alterar o sabor).
Normalmente o porco é animal de ouvido piloso e ceroso. E aqui é preciso mais determinação (mas sem obsessão-compulsão) a raspar ceras e pêlos, que normalmente exigem uma de maçarico de tão presos que estão ao painel auditivo. Esfregue a cabeça com sal e reserve (sempre quis escrever reserve).

Indicações

Numa panela onde caiba a cabeça de porco limpa aloure em gordura de ganso ou azeite seis chalotas inteiras e seis dentes de alho inteiros descascados, um alho francês às rodelas, duas cenouras às rodelas. Depois insira a cabeça de porco limpa, baptize-a com meia garrafa e vinho branco (por ex.º Qta de Camarate), ½ a um litro de caldo de galinha (dependendo da panela) e, por fim, um cálice de brandy. Atirar 5 grãos de pimenta preta, sal, um grão de pimenta da Jamaica, louro, um molho de ervas aromáticas, um talo de aipo cortado em troços de 3 cm. Tape e leve ao forno em lume brando, cerca de três horas. Vá abrindo e molhando. A meio do tempo retire as orelhas. Estará pronta quando a carne se começar a despegar da caveira.

Servir. De entrada corte as orelhas cozidas em juliana fina e misture com um molho vinagrete. Prato: retire a cabeça inteira, coloca num tabuleiro, ou numa tábua de cozinha e desperte o Lobo Antunes que há em si: com uma faca afiada, comece a descascar do topo da cabeça para baixo, primeiro um lado e depois outro. Acompanhe com um puré de batata (batatas cozidas com casca, descascadas e esmagadas, juntar manteiga, um pouco de natas e pimenta) e o resto do molho vinagrete misturado com cebola picada, pickles picados e uma colher de mostarda de Dijon. Ao lado, um molho de grelos com vinagre e alho. Inspirado em receitas de Fergus Henderson (restaurante St. John, UK) e Thomas Keller (restaurante The French Laundry, USA).

Lourenço Viegas 22.10.2008

Contraprovador

  • Lourenço Viegas, 54 anos, é geólogo e crí­tico gastronómico. Colabora semanalmente na Time Out Lisboa. Nasceu em Lourenço Marques e vive no Ribatejo. Tem duas filhas.
Powered by Blogger
and Blogger Templates