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30.9.08 

Porto de Abrigo (4/6)

A forca da mudança

O Porto de Abrigo, no Cais do Sodré, faz-me sempre reflectir sobre as relações entre os homens (leia-se "pessoa humana"). Não é por causa das prostitutas que por ali há, docas secas outrora viçosos portos de abrigo. É a coisa da mudança.
Com os restaurantes construímos relações. E as relações duram o que dura a nossa capacidade de aceitação do outro em si. Há restaurantes que mudam, outros que não mudam. E nada pior que um restaurante estático evoluir, ou que um restaurante vivo estagnar.
O Porto de Abrigo não muda e é isso que dele se espera. Nem a carta, nem os clientes, nem o serviço. Nem os preços, honestos.
Houve apenas uma mudança na sala. Há uns anos. Uns elementos de madeira, que se aceitam como aquele momento em que uma mulher deixa de ter cabelo comprido e passa a usar um capacete contra os anos que lhe começam a cair na cabeça cada vez mais depressa. Saiu a bonita placa da parede exterior. Dizem que foi roubada. Também se aceita, como quando o dermatologista não deixa margem para se tirar aquele sinal, na bochecha esquerda, que apesar de estar a cancerar, dá a graça toda àquele sorriso moreno.
Se vou ao Porto de Abrigo é para comer uma vieira gratinada, um polvo e uma mousse de chocolate. Nem mais. Nem menos.
A vieira gratinada é saborosa. Um recheio de berbigão e de outro marisco cortado, com queijo por cima. Uma textura tosca, que apetece continuar a comer, o sabor de uma comida antiga. Mas o melhor – porque o melhor muitas vezes é a voz e não as palavras – é a colher a raspar na concha. O raspar faz parte do comer. A colher a arranhar o calcário da concha, como o giz a deslizar na ardósia, sem o risco do barulho-fura-tímpanos, ou um bico no osso de choco (se tivesse um restaurante, havia de obrigar os clientes a afiarem os dentes num osso de choco, iam achar o máximo e eu ia rir-me à sua custa). E no fim, nas bordas da concha, fica um debruado a toda a volta de queijo e recheio caramelizados que, com persistência e força, se consegue também comer. Ao longe, um ligeiro picante de pimenta branca (por que é que na distribuição de prostituas pelos árbitros, os meliantes não diziam "pimenta preta", "pimenta branca", "pimenta da Jamaica", "cinco bagas", tudo nomes mais apropriados, e gastronomicamente mais subtis, do que fruta e café com leite – mas isso é gente de poucas subtilezas, pelo menos gastronomicamente falando).
Depois, o polvo à Porto de Abrigo. Duas longa manus numa travessa de inox, com salsa e uma gordura com um fundo de pimentão. Um arroz castanho, cozido na água do bicho (?). O polvo em si é umas vezes mais tenro do que outras.
Para desenjoar do polvo, há um bacalhau à Brás generoso e saboroso a notar-se a cebola como gosto.
A mousse para terminar, escura escura, cremosa, muito doce. Há uvas e melão. Há peras bêbadas.
Ao fundo da sala, um dono vai fazendo as contas. Cá fora, um Portugal muito passado. As tascas que a ASAE não fecha. Os despachantes que a União Europeia não mata. Os marinheiros que a paz não obsoleta. As prostitutas que sobrevivem. A mudança que não muda.


Lourenço Viegas


Porto de Abrigo
R. dos Remolares, 18 (Cais do Sodré)
****Bom

Contraprovador

  • Lourenço Viegas, 54 anos, é geólogo e crí­tico gastronómico. Colabora semanalmente na Time Out Lisboa. Nasceu em Lourenço Marques e vive no Ribatejo. Tem duas filhas.
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