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30.9.08 

Alentejo nas Docas (2/6)

Meu rico Alentejo...

Entre a Bastilha e o Largo do Carmo estão as Docas. Símbolo do início do movimento de libertação dos cidadãos do enclave de Lisboa em relação ao Porto de Lisboa, neste estranho caso de uma cidade livre que sucumbiu a um polvo administrativo. Não cabe aqui muita tergiversação (palavra que se tornou fácil desde que Mugabe foi a eleições) sobre o Porto de Lisboa – pois qualquer linha que não se dedique ao restaurante em si é sempre usada para atacar a crítica e o crítico - mas penso que o poder do Porto de Lisboa está no nome. Era como se o Estádio do Sporting se situasse em Benfica de Alvalade, ou Teerão estivesse na província iraniana de América, ou os Estado-Unidos tivessem um presidente chamado Osama. Ooops.
Feito o rapapé libertário, ir às docas é penoso. Dolorosa paragem na via crucis de qualquer crítico gastronómico. A bem dizer, de qualquer lisboeta (de nascimento ou de visita): há-de pelo menos uma vez percorrer aquela estação para a frente e, invariavelmente, para trás.
O restaurante Alentejo nas Docas dá o mesmo dilema dos outros restaurantes: comer junto ao rio, ou dentro do armazém? As refeições junto ao rio são para quem prefira estar mais envolto pelo zumbir da ponte e servir de chamariz a um casal indeciso, bem arreados, que combinaram, num arrimo da espontaneidade rotineira própria dos casais, ir jantar às docas. Mas lá dentro, apesar de não se sentir tanto o agradável cheiro do lodo e da tainha da doca lisboeta, sempre se pode observar de cima as gentes e os barcos que passam, subindo umas escadas cujos vidros parecem não ter sido limpos desde que as docas ainda não eram as Docas.
Para não esquecermos que estamos num restaurante alentejano, à entrada um aquário de marisco, que o alentejano, pelo menos o do estereotipo, sempre foi amante de uma boa mariscada.
E por isso nem estavam maus – nem bons – uns camarões fritos de entrada, melhor a farinheira com ovos e espargos (traduzida na ementa como bread with eggs, ou qualquer figura de estilo do género).
O cação de coentrada muitíssimo salgado e talvez demasiado avinagrado, o que mata um prato que tem que tocar no limite dos sabores sem os ultrapassar. Também não ficará na história o pernil de porco à moda de Elvas, ressequido por dentro, carnes enrijecidas, como acontece ao porco sempre que não é tratado com carinho. (Talvez tivesse sido aquele empregado mais velho – que entregou rudemente as ementas sem responder às perguntas que lhe foram feitas e depois felizmente não voltámos a ver – a tomar nas suas mãos o pobre bicho que por vingança se entesou). Atitude que contrastou com uma simpatia e dedicação extrema dos outros serviçais.
Tudo acompanhado de batatas fritas congeladas (num mundo perfeito, mas em que não queria viver, a ASAE proibiria musculadamente as batatas fritas congeladas), péssimas, mal escorridas. Um costeletão para duas pessoas, baixinho, rijo, acompanhado de uma macedónia inacreditável de legumes congelados sem sal nem jeito (aquela cenoura miniphalos, o feijão verde daquele que, cá vai, se come muito em França, em cilindro chicote que sempre sabe a nada e uma couve-flor que lembrava pickles da mesma demolhados).
No fim, um misto de sobremesas alentejanas médias, diria mesmo, estandartes standard, mas que o antecedente e a envolvente não puxam.
E quando se volta ao zumbido da ponte e ao cheiro do lodo para digerir aquela "comida" "alentejana" (não tirar quadriaspas), diante de uma montra em que uma linha de jovens serpenteia as ancas num desespero caribenho, é de pensar se ainda faz sentido vir às docas. A não ser em homenagem à tomada do rio pelos lisboetas.

Lourenço Viegas


Alentejo nas Docas (Docas)
**mau


Time Out Lisboa, 13 de Agosto de 2008

Contraprovador

  • Lourenço Viegas, 54 anos, é geólogo e crí­tico gastronómico. Colabora semanalmente na Time Out Lisboa. Nasceu em Lourenço Marques e vive no Ribatejo. Tem duas filhas.
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