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25.6.08 

Arraial ZIP ZIP (2/6)

A náusea

A função dos santos populares de Lisboa é enjoarmos Lisboa. Eu explico. Somos todos bulímicos daquilo que gostamos. De tempos a tempos, é preciso enjoar para voltar a desejar, vomitar para voltar a comer. Quem não enjoou já um CD, um filme, um quadro. Noites de Domingo dos fins-de-semana em jornada contínua nos inícios dos namoros.
Os santos populares, e com isto quer-se dizer o mês de Junho, engolfa-nos numa Lisboa profunda que durante o ano julgamos, ou desejamos, adormecida. A Lisboa do mijo do gato.
Nas cadeiras do arraial do Grupo Desportivo Zip-Zip, na Rua dos Cordoeiros, a sardinha é má, o entrecosto razoável, a batata cozida indescritível, o sítio único, a experiência desafiante.
A inclinação da rua, espelho da assimetria social da alface, torna difícil o comer, salão de paquete ondulante, as cadeiras de plástico de pernas trôpegas a ceder ao peso do comensal, o prato de plástico a fugir, os talheres de plástico a partirem de cada vez que tentam fincar o entrecosto ou a entremeada. Mais vale comê-los à mão, ou em cima de um dos nacos de pão.
E também com a mão, ir tirando uma e outra batata frita, daquelas de pacote, daqueles mais tradicionais tipo pala-pala, sem rugas ou ondulações, daquelas que trazem logo o sabor a frango assado (com picante ou sem picante? cortado ou inteiro?).
A roupa estendida nas janelas. Os gritos oh vizinha, famílias multipolares, cozinhas a brilhar, sempre muito arrumadas, o orgulho que resta no luzir do fogão, com o pano a descansar na pega (ou será puxador?). Plasmas na parede, a dar o europeu (o Santo António foi, no seu tempo, uma espécie de Figo da Igreja).
Na mesa de plástico, uma salada, entre dois garfos de plástico decapitados pelo entrecosto, troncos de cebola, pimento, alface. Salada generosa, mas que não quer nada com o azeite, de galheteiro asae.
Dizem que a sardinha talvez estivesse má por causa das greves dos pescadores e dos camionistas, a ladainha do preço do petróleo que dá para tudo (foram dias impagáveis estes em que meio mundo açambarcou comida e gasolina, um espectáculo de portugalidade como as filas de seis horas à porta do pavilhão da Alemanha na expo noventa e oito).
Ficamos eternamente a saber a cebola e àquela gordurinha do chouriço assado para não esquecermos que Lisboa é também o largo de Santo Antoninho, as mães adolescentes que saem de um prédio e entram noutro, com travessas numa mão e os filhos na outra.
Há poucos sítios assim. Um camarote na única Lisboa.
Era mesmo só pedir, a Santo António, Santo Antoninho, achador das coisas perdidas, que não fosse tão má a comida. E assim era perfeito- perfeito este empanturranço de Lisboa, antes de voltarmos aos dias do costume, na Lisboa menos Lisboa, menos popular e menos santa dos Saldanhas e dos Chiados. Lourenço Viegas


Time Out Lisboa, 18 de Junho de 2008

**Mau


Arraial do Grupo Desportivo Zip-Zip, R. dos Cordoeiros Ao largo de Santo Antoninho (até ao fim das festas)
R Cordoeiros-Bica 15-r/c, Lisboa

Contraprovador

  • Lourenço Viegas, 54 anos, é geólogo e crí­tico gastronómico. Colabora semanalmente na Time Out Lisboa. Nasceu em Lourenço Marques e vive no Ribatejo. Tem duas filhas.
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