Tentações de Goa (4/6)
Goa transe
Martim Moniz podia ser nome de moço snob. De beto. Mas com a praça Lisboeta, restos do Império que nunca foi e ensaio de uma Europa que não vai ser, nenhuma família de sobrenome Moniz porá Martim ao varão. Mas o Martim Moniz (ou Martins Moniz, como dizia uma empregada antiga), como praça, é bem agradável. Além de permitir estar na Nigéria, em Hong Kong e Carachi, tudo na mesma esplanada, deixa-nos ir vendo os turistas que escolheram o Hotel Mundial na internet, de mapa mal lido na mão a dirigirem-se perigosamente para o Intendente, em vez de para o rio, com aquela cara de que "isto parecia diferente nas fotografias da minha cunhada").
As colinas de um lado e do outro. A praça protegida. O anti-terreiro-do-paço, que mais valia chamar-se torreira-do-sol, um descampado aberto, ao sol agreste de Lisboa, quase mais triste sem carros do que com carros...
O melhor do Martim Moniz é o que se esconde por detrás daqueles dois centros comerciais (que já começo a achar que ficam ali bem), na Rua de S. Pedro Mártir, martirizado à machadada no século treze, ainda antes de chegarmos às índias, por um cátaro.
Montaillou (terra de cátaros) devia ser assim, como aquela rua da Mouraria, esconsa e esguia, escura de dia, ecoante de noite. Sempre observados quanto entramos pela porta, para comer comidas passadas de um além-mar.
O chouriço à goesa, forte, gorduroso, picante, bom, devia ser assim dantes. A arder na goela quando desce, a furar a úlcera quando aterra lá em baixo. E em Goa (já foi há tantos anos, não foi?), uma ementa que não tinha porco, para não ofender os hindus, mas havia porco. Que bem que soube, speakeasy suíno.
E todas as doses – e talvez seja isto o que mais surpreende as bocas e os espíritos no restaurante Tentações de Goa – são substanciais no sabor e maiores do que a standard fare do restaurante étnico (potes de cobre de base minúscula com micro resíduos de carne ou peixe). Não aqui. Bocados grandes e molhanga mais substancial, mais apurada. Com sabores diferentes, o sarapatel a distinguir-se do balchão. O vindalho mais ocidental do que o xacuti. Os estilhaços do sarapatel nobres, a distinguirem-se entre si. Picante, muito picante (o fantasma presidencial "nós é mais arroz e iogurtes...".
No fim, um excelente doce de grão que a memória levou o nome. Losangos doces, a esfarinharem. Extintores da boca, tições da alma.
O pior do restaurante, além do nome, é estar na moda. Mas as modas passam. E o caril há-de ficar. Se S. Pedro, o mártir, quiser. Lourenço Viegas
Tentações de Goa
R. S. Pedro Mártir, n.º 23 (Martim Moniz)
****Bom
Time Out Lisboa, (a)13 de Maio 2008.
Martim Moniz podia ser nome de moço snob. De beto. Mas com a praça Lisboeta, restos do Império que nunca foi e ensaio de uma Europa que não vai ser, nenhuma família de sobrenome Moniz porá Martim ao varão. Mas o Martim Moniz (ou Martins Moniz, como dizia uma empregada antiga), como praça, é bem agradável. Além de permitir estar na Nigéria, em Hong Kong e Carachi, tudo na mesma esplanada, deixa-nos ir vendo os turistas que escolheram o Hotel Mundial na internet, de mapa mal lido na mão a dirigirem-se perigosamente para o Intendente, em vez de para o rio, com aquela cara de que "isto parecia diferente nas fotografias da minha cunhada").
As colinas de um lado e do outro. A praça protegida. O anti-terreiro-do-paço, que mais valia chamar-se torreira-do-sol, um descampado aberto, ao sol agreste de Lisboa, quase mais triste sem carros do que com carros...
O melhor do Martim Moniz é o que se esconde por detrás daqueles dois centros comerciais (que já começo a achar que ficam ali bem), na Rua de S. Pedro Mártir, martirizado à machadada no século treze, ainda antes de chegarmos às índias, por um cátaro.
Montaillou (terra de cátaros) devia ser assim, como aquela rua da Mouraria, esconsa e esguia, escura de dia, ecoante de noite. Sempre observados quanto entramos pela porta, para comer comidas passadas de um além-mar.
O chouriço à goesa, forte, gorduroso, picante, bom, devia ser assim dantes. A arder na goela quando desce, a furar a úlcera quando aterra lá em baixo. E em Goa (já foi há tantos anos, não foi?), uma ementa que não tinha porco, para não ofender os hindus, mas havia porco. Que bem que soube, speakeasy suíno.
E todas as doses – e talvez seja isto o que mais surpreende as bocas e os espíritos no restaurante Tentações de Goa – são substanciais no sabor e maiores do que a standard fare do restaurante étnico (potes de cobre de base minúscula com micro resíduos de carne ou peixe). Não aqui. Bocados grandes e molhanga mais substancial, mais apurada. Com sabores diferentes, o sarapatel a distinguir-se do balchão. O vindalho mais ocidental do que o xacuti. Os estilhaços do sarapatel nobres, a distinguirem-se entre si. Picante, muito picante (o fantasma presidencial "nós é mais arroz e iogurtes...".
No fim, um excelente doce de grão que a memória levou o nome. Losangos doces, a esfarinharem. Extintores da boca, tições da alma.
O pior do restaurante, além do nome, é estar na moda. Mas as modas passam. E o caril há-de ficar. Se S. Pedro, o mártir, quiser. Lourenço Viegas
Tentações de Goa
R. S. Pedro Mártir, n.º 23 (Martim Moniz)
****Bom
Time Out Lisboa, (a)13 de Maio 2008.