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25.3.08 

Adega da Tia Matilde (4/6)

Restaurante apesar do restaurante

A vida pode ser dividida em refeições. Do jantar ao almoço, do almoço ao jantar. Há uma fase em que o jantar é rei. Jantar fora, ir jantar a casa da Teresa, convidar os Paulos para virem cá jantar. É a idade da estupidez, das desoras, dos jantares mais pelas pessoas ou pela bebida do que pela comida. Quando começa a arder a azia, ou se fecham as malhas da família, passa-se do jantar fora ao almoço. Almoçamos um dia destes, no Chiado ou no Marquês. O almoço, mesmo com colegas, ou entre esposos, é o ponto de fuga da família, do trabalho. A comida pode ou não ter centralidade. Depois, há alguns dos chamados escolhidos para acederem ao Olimpo da refeição: o jantar à luz do dia, de preferência terminado ao lusco-fusco. Jantar de dia é viver dentro de um quadro do Hopper. A Adega da Tia Matilde fura um pouco aquela tripartição. Um restaurante que se sobrepõe às refeições. É o reino timelessness. Pessoas que almoçam como jantam e jantam como almoçam. Que se demoram, sem se arrastarem, com um arroz de lampreia e babete. Que bebem uma atrás de outras garrafas de branco e de tinto, sem que o álcool entorpeça a deglutição da caldeirada forte e reconfortante. Casais a almoçarar, partilhando travessas – e que gosto dá vê-los, à espanhola, primeiro um cabritinho, ele serve-a, e depois, para terminar, uns filetes saborosos sem serem fritos demais (hei-de reler aquela crónica do Miguel Esteves Cardoso em que, naquele seu jeito de ser melhor que os outros, disserta sobre o problema da justificação na relação dos portugueses com a comida. Que nunca comem nada por comer. É sempre para começar, acabar, amaciar, preparar o estômago...).Começo pelo cocktail de camarão, retro sixties, uma armadilha em que
raramente não caio. O da Tia Matilde lá está, vieille cuisine a boa temperatura (às vezes, noutros lados vem quase gelado e com crosta no molho de tanta espera na arca), fresco, voltar a ser criança e a ir ao restaurante ao Porto com a Tia Micas quando o pedaço de camarão encontra o doce do molho. Na Tia Matilde é também de boa nota o marisco. E como é bom mariscar sem ser numa marisqueira. Na lista vem que o cabrito não é cabrito é cordeiro, acto de verdade inédito. Tantas vezes se esquece, ou se quer esquecer por essas ementas afora, que a cabra dá o cabrito (o cabrão, não), a ovelha dá o carneiro (mais velho) e o cordeiro, anho ou borrego (mais novos).A perdiz bem estufada (não sei se selvagem, se de aquário), um cozido reluzente, batatas sempre boas, em pala as da perdiz, bem assadas as do cabrito (que era cordeiro) e macias as do bacalhau, a murro. Empregados eficientes que não dão muita confiança a estranhos, com aquela brusquidão de quem serve muitos doutores que comem o salário em lampreia e o bebem em vinhos caros. Trazem sobremesas catitas, arroz-doce bem amarelinho (amarelo ficava mal), tarte de maçã em camadas, maçãs bem assadas. Depois é acabar o almoço, descer pela escadinha à garagem, entrar no carro e apostar. Estará de dia ou de noite lá fora? A Adega da Tia Matilde é um restaurante de confiança. Apesar do nome. Apesar do local. Apesar de não ter janelas. Apesar da cabeça de touro cornudo com o cachecol da selecção nacional de futebol. Um bom restaurante. Apesar do restaurante. Lourenço Viegas
****Bom

Adega da Tia Matilde
Rua da Beneficência, n.º 77

Contraprovador

  • Lourenço Viegas, 54 anos, é geólogo e crí­tico gastronómico. Colabora semanalmente na Time Out Lisboa. Nasceu em Lourenço Marques e vive no Ribatejo. Tem duas filhas.
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