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30.1.08 

Lampreia

Tudo o que você sempre quis saber sobre lampreia e teve vergonha de perguntar

1. A lampreia é mesmo uma espécie de cobra?
No plano da biologia, não; no da linguagem comum, mais ou menos.
A lampreia parece uma cobra, mas não é uma cobra; parece um peixe-espada antes de ser espalmado, mas também não é um peixe. Não sabe a cobra, nem a peixe. Não tem barbatanas e tem uma boca em forma de desentupidor de canos com dentes até na língua (é um ciclóstomo). Tem furinhos de lado, como as entradas de ar dos carros do tunning. No Bestiário de Aberdeen (sec. XV) diz-se que a lampreia resulta da união sexual entre lampreias fêmeas e cobras. É capaz de ser verdade.

2. A lampreia é mesmo um ciclóstomo ou foi uma palavra inventada para os jornalistas gastronómicos parecerem inteligentes?
A lampreia pertence mesmo à classe dos ciclóstomos por ter corpo cilíndrico e a boca redonda que usa para sugar a carne e o sangue dos outros peixes.

3. É em virtude de a boca da lampreia ser parecida com um desentupidor de canos que se deve acompanhar com vinho verde tinto?
Na verdade, há quem diga que o vinho verde tinto tem propriedades desentupidoras de canos, daí o sabor, o gás e até a coloração berrante (que ajuda os canalizadores a detectarem roturas de canos). No entanto, trata-se de alegações não provadas. Pode sempre beber-se a lampreia com espumante tinto, que fica melhor.

4. A lampreia sabe a quê?

É uma pergunta difícil A lampreia tem um sabor único, uma mistura de atum de sangacho e raia, a saber predominantemente a louro, cravinho e vinagre. Se a tripa for mal tirada, sabe a outra coisa.

5. Se a lampreia soubesse bem, era preciso ter tanto vinagre?
Há quem diga que o vinagre realça o sabor da lampreia, há quem diga que apenas serve para esconder a gordura dos exemplares menos secos. É contudo, pelo menos parcialmente, uma inferência válida que os pratos com vinagre têm origem em práticas de conservação de alimentos que tendiam a estragar-se. É também certo que o vinagre anda sempre associado, pelas suas propriedades hematoqualquercoisa, a pratos confeccionados com sangue.


6. Se a lampreia custasse € 3.99 por quilo e estivesse disponível o ano inteiro, tinha tantos adeptos?
É difícil de saber, e a própria pergunta ofende os apreciadores. Em economia, há o efeito da sinalização pelo preço, que leva os consumidores a preferirem e associarem uma maior satisfação aos produtos mais caros. Por outro lado, o facto de não estar disponível nem abundante nem permanentemente cria um sentido aspiracional e de exclusividade que também pode ser uma das explicações do seu sucesso. Encontramos o mesmo fenómeno em certos mariscos e no sável.

7. Deve comer-se tudo o que vem para o prato, incluindo a pele de cobra e as coisas pretas do meio?
Sim. A lampreia não tem espinhas. Pratos quase limpos é uma imagem de marca. Se for contemplado com ovas, deve realçar o facto dizendo "hmmm, fiquei com uma fêmea".

8. A lampreia à bordalesa é uma receita oriunda da casa de Melgaço em Bordéus?
Apesar de um prato confeccionado à bordalesa respeitar à cidade francesa de Bordéus e apesar de haver uma vasta comunidade de emigrantes minhotos em Bordéus, não há provas de que a receita de lampreia à bordalesa tenha origem em tal comunidade. Lembre-se que em França também há uma tradição antiga de comer lampreia.

9. A lampreia de ovos é feita de lampreia?

Não. É feita de ovos, tem cerejas de conserva a fazer de olhos e normalmente parece um tamboril.

10. Dá mau aspecto não gostar de lampreia?
Depende. A lampreia é, em certos meios, normalmente masculinos, urbanos de origem rural, com alguma erudição gastronómica e levemente marialvas, um símbolo de bom gosto e de pertença a um grupo. Se os seus amigos gostam de lampreia e se se recusa a meter a cobra na boca, evite almoços ou jantares entre Janeiro e Março em que no convite se refira a palavra iguaria, bordalesa ou minhota. Nesses grupos, assumir que não se gosta de lampreia pode levantar suspeitas sobre a orientação sexual (embora freudianamente se pudesse fazer a interpretação oposta). Também no caso de ser crítico gastronómico, não deve assumi-lo publicamente, nem sequer achar que o preço e histerismo à volta da lampreia são disparatados.

Lourenço Viegas
Time Out, n.º 18, 30 de Janeiro 2008

Contraprovador

  • Lourenço Viegas, 54 anos, é geólogo e crí­tico gastronómico. Colabora semanalmente na Time Out Lisboa. Nasceu em Lourenço Marques e vive no Ribatejo. Tem duas filhas.
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