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21.11.07 

Sete Pecados Restauracionais

Os sete pecados dos restaurantes de Lisboa (e de qualquer lado...)

Escrever sobre restaurantes requer um mix estranho de modéstia e de imodéstia. Agrupar as falhas dos restaurantes nas caixas dos sete pecados é isso mesmo: é ser modesto e abrir o jogo, como que a dizer, acertem nisto e têm mais estrelas; mas é também imodéstia, é responder com um grande sim àquelas muitas cartas que se vão recebendo com a pergunta "mas você pensa que é dono da verdade?". E já agora, em cada pecado, feche os olhos, sinta a coisa e descubra por si os nomes dos restaurantes-musas.

1. ORGULHO. O mundo da restauração portuguesa entende o jornalismo gastronómico como em Angola o poder político vê a comunicação social e a liberdade de imprensa. Compreende-se. Foram anos de bajulação acrítica, temor, publicidade sob a forma de notícias e críticas de restaurantes em que se fala mais do mapa das estradas da Galp do que da comida e do serviço. Eram pancadinhas nas costas, cumplicidades. Porreirismos. A malta habitou-se e agora estranha. Sente-se ameaçada. E ameaça. Compreende-se. É mais fácil tentar comprar o crítico do que aprender a fazer risotto. É mais fácil (e mais barato!) intentar acções judiciais do que contratar cozinheiros que saibam fazer noodles. É mais fácil fazer pressão junto dos fornecedores anunciantes do que evitar novas pragas de baratas na cozinha. E por isso não se toleram opiniões menos boas, escritas ou orais. Ao mínimo dissenso, justificam, explicam, ameaçam, recusam livros de reclamações. Uma vez, num restaurante nas Docas, serviram-me uma couve azeda e fermentada, que tresandava (e não, não era choucroute). Pedi para a retirarem do prato; veio de volta igual: o chefe tinha mandado dizer que "era couve salteada e que se calhar o cliente não estava habituado".

2.INVEJA. Invejar é cobiçar o bem alheio. É pretender ser original e copiar a criatividade do outro. É não assumir que aqueles ovos são copiados de um restaurante em Madrid, ou que o conceito do meu restaurante é igualzinho ao de uma cadeia internacional mas que não se quis entrar nesse estranho mundo do franchising. É servir um menu degustação temático copiado da internet, é dizer mal de outros restaurantes, de outros chefes. É passar-se por chefe quando não se estudou, não se cozinha nem cozinhou e apenas se vai à televisão. É também, em menor escala, aquela tia que montou um pronto-a-comer, ou aceitou ser gerente do restaurante chique de um amigo, mas que recebe todos os clientes com um olhar nasalado e vomitado, como se nós tivéssemos culpa que ela agora estivesse a servir e não a ser servida.

3. IRA. A ira são empregados e donos rudes, mal e pouco dispostos a servir. Que atiram as ementas e os olhares, e que ralham. Ira é também o restaurante-código-penal. Não podemos juntar as mesas. Desculpe. Não me posso sentar nesta cabeceira (vou ter que ficar sem ninguém em frente, de castigo, virado para a casa de banho). Desculpe. Um copo de água ou um copo com água? Com água, desculpe, pois, vazio é que não queria. Queria, não, quero, pois, ainda quero. Tem razão. Não podemos dividir a dose, desculpe. Só aceitam reservas para as oito e para as dez, e temos que sair antes das dez. Desculpe lá ter perguntado. Ainda não acabámos todos de comer mas pode ir levantando os pratos dos que já acabaram. Para a adiantar serviço, claro. Também peço desculpa por aqui ter vindo jantar, sabe. A sopa é de legumes? Obrigado, pensei que fosse de arroz doce. Se é verdade que cada empregado rude devia poder ser açoitado pelos clientes (com uma colher de pau, à saída, um açoite por cliente, mulheres e crianças dois), mais verdade é que – houvesse já na terra a justiça divina – cada cliente que maltrata um empregado (com ou sem razão) seria submetido a um clister de arroz de marisco (com cascas).

4.AVAREZA. Ainda pior do que pessoas com má relação com o dinheiro, são restaurantes avaros, contas enganadas, marteladas, três garrafas de vinho em vez de duas, facturas que não vêm. Ah, os camarõezinhos não chegaram a vir para a mesa? Não aceitam cartões? Desculpe. Acresce cinco por cento com cartão. Claro. Desculpe não me ter lembrado do multibanco ali a cinco minutos, do outro lado da Avenida. E, uma vez (num restaurante que não merece qualquer comenda), um vinho cinquenta por cento mais caro na conta do que na carta, porque os preços "tinham subido". Outras vezes, são os extras por levar um bolo de casa (acrescem dois euros por pessoa!).

5. GULA. A gula não pode ser um pecado de um restaurante, se tudo assenta na comida e no gosto por esta. Errado. A gula é comer demais, demasiado cedo ou por demasiado dinheiro (dizem os doutores da igreja. Ou serão os Drs.?). Guloso é o restaurante que desperta o lambão em cada cliente. Tenho ali, só para si, um robalinho de anzol, maravilha, que estava guardado para um Dr. que só não veio porque lhe nasceu um neto. Não, não é demais para dois – só como o que quiser. São as doses gigantes, o rodízio all you can eat. Há restaurantes que apostam neste síndrome de família portuguesa em buffet de pequeno-almoço em Pipa. É gula a mesa forrada de entradinhas não pedidas, é gula as sopas a cinco euros.

6. LUXÚRIA. A luxúria é o restaurante circo, onde a comida está apenas por acaso, é o reino do acessório. É o restaurante da garrafa aberta com um sabre, dos crepes malabaristas no meio da sala, dos empregados com intercomunicadores, martas da ok teleseguro da comida. É o espectáculo dos empregados que se chamam por beijinhos, das ementas incompreensíveis. Restaurantes em que tudo o que não é espesso é carpaccio, tudo o que é liquido é shot, e o porco é sempre preto. São salas com um rácio de empregados por cliente superior ao de adjuntos por vereador na CML.
Restaurantes de chefes impostores e de clientes que não pagam impostos, onde se vai para ver e ser visto.

7.PREGUIÇA. Preguiçoso é o restaurante incompetente ou blasé, que não foi à escola, ou que já se esqueceu. Restaurante ocioso não tem talher de peixe, que isso é novo-riquismo de freguês (assim como assim, peixe não puxa carroça). Pão fresco ou recesso reaceso no forno é igual. É restaurante que não muda a carta (em equipa que ganha não se mexe! É convocar o Coluna para o próximo mundial).Preguiça é o restaurante que forra o wc a pêlos púbicos, onde ninguém se lembrou de substituir o sabonete que acabou (o Anthony Bourdain alerta: se o wc é assim, imagine a cozinha que está escondida...). Lourenço Viegas


Lourenço Viegas
Time Out, n.º 9, 21 Nov. 2007

Contraprovador

  • Lourenço Viegas, 54 anos, é geólogo e crí­tico gastronómico. Colabora semanalmente na Time Out Lisboa. Nasceu em Lourenço Marques e vive no Ribatejo. Tem duas filhas.
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