« Home | Nau do Restelo (3/6) » | Pastéis de Vila Real (cristas) » | Presuntaria do Tejo (3/6) » | Batatas fritas do Burger King » | Sul (2/6) » | Vinotinto (2/6) » | Pastel massa tenra Frutalmeidas » | Chávena perfeita » | Nune's Real Marisqueira (4/6) » | Gin do Peters » 

13.11.07 

O melhor bife de Lisboa

O bife que há em nós

Provar seis bifes é trabalho de lenhador, é apontar para a árvore e abstrair da floresta. Seis bifes, do lombo e mal passados. É certo que são quase cinquenta anos a comer bifes e a encharcar o pão no molho sobrante do bife do Café Império, molho dos tempos de estudante, e de outras épocas menos deprimentes. O que mais intriga é aquele sabor a caramelo, como se alguém tivesse despejado um saco de caramelos werther's original na frigideira. Depois, já se sabe, fica o bigode cheirar a ranço umas doze horas (sai com detergente para a loiça de limão – uma técnica apurada para que ela não descubra quando vou ao Império). A carne, não muito alta, macia mas sem ser perfeita, tem dias e é um pretexto para o molho. Nas batatas, pré-congeladas, não toco (a vida é curta para comer batatas fritas congeladas – vivo de máximas, fui criado com uma avó).

Como escrevi – é tão bom repetirmo-nos - nos tachos do Império viviam os "ranços eternos", fogos zoroástricos, e temi que a remodelação do local estragasse a cadeia há várias décadas ininterrupta. Felizmente mudaram os empregados rançosos, mas deixaram o molho como estava. Foi a única coisa. Olho à volta, desolado: o café Império já não é um sítio deprimente.

No Snob, lembro-me sempre da adolescência. Pelas piores razões. O molho do bife do Snob sabe a pijama party de adolescente pré-púbere em que os bifes que a mãe deixou num tupperware, temperados, são afogados num molho que tem como único critério a utilização de um pouco de cada molho que haja no frigorífico. Ficava tudo a saber a um mau molho cocktail de hipermercado. Molho assim, róseo, adocicado, já só há no Snob. Mas pouco importa aos empregados de reacção lenta, ou à maioria dos comensais que, sem reparar no bife, se preparam para outras carnes e outros molhos. As batatas são caseiras (às vezes gozam-me por usar este termo), cortadas à matroca, fritas uns minutos abaixo do devido, mas sinceras. Se pedir factura, normalmente fazem perguntas. Como é que sei? São cinquenta anos a comer bifes, já lhe disse.

Prova de bifes no XL só perto das onze da noite. Gosto da cara de espanto que eles fazem quando chegamos sem reserva. É bom ser repreendido pelo porteiro ("não pode estacionar aí o carro", querendo dizer não pode estacionar aí esse carro), ser repreendido pelos empregados ("sem reserva não há mesa, nem pensar"), e olhado, vá lá, com um sorriso - meio-espantado, é certo - pelo dono. É claro que havia mesa. Há sempre. Eles aqui preferem jeans encarnados, mocassins rasos e um bronzeado uniforme, e se topam que a pessoa acordou antes das duas da tarde, é o pior – you just don't mingle. Desconfio que não terão lido uma crítica que publiquei em tempos (sim, era ironia)... A carne é boa, mas ligeiramente enervada, sem a homogeneidade do bife perfeito, mas que justifica o molho, muito puxado, de nata e alho forte. As batatas estavam ensopadas em óleo, pouco estaladiças, ao contrário da quase totalidade das vezes, em que são bem feitas. O crítico é clemente.

No Toni dos Bifes, está o mais tenro dos bifes, com um molho razoável apesar da tendência de alguns restaurantes para molhos assim (agarre o molho com dois dedos em pinça, como para ver o ponto do açúcar), com viscosidade de ranhoca. É um restaurante normal (normalidade é qualidade que se aprecia).

Na folha de serviço estava a Portugália. Julguei que queriam que eu provasse bifes. O Almirante Cândido dos Reis foi um totó de um republicano que se suicidou na madrugada do quatro para o cinco de Outubro, porque julgava que a República tinha perdido a revolução. Isto pode dar algum bom karma a uma rua e aos seus restaurantes?! Média a carne, mau o molho, más as batatas. Pois, já sei, temos de dizer bem dos sítios tradicionais de Lisboa. Very typical. Bife para bifes e bife para quem só gosta de bife (já disse que quem só gosta de bife, não gosta de bife).

Deixo para o fim o Café de S. Bento, para não ser tão exigente com os outros, e ficar com uma boa memória na boca. É o bife perfeito. Voltando a citar Lourenço Viegas, o teórico, o bife "é uma realidade trinitária. Bife é a carne e as batatas, unidos pelo molho, harmonia perfeita, impossibilidade de gostar mais de qualquer dos elementos do que do outro por mais de um breve segundo, as batatas a pedirem aquele bife, e o molho a manter o flow da batata ao sangue". A perfeição está ali, naqueles poucos centímetros cúbicos mal passados do lombo de uma vaca, num molho divino, com batatas que espicaçam os sentidos. Seis estrelas, ou lá o que é. E atenção, muita atenção, isto são estrelas aos bifes e não aos restaurantes.

Cansaram, estes dois dias de lenhador. Prefiro assim, provar bifes é melhor do que provar restaurantes. Há mais objectividade e menos responsabilidade. É a diferença entre opinar sobre o corpo da nova namorada de um amigo ou ter de dar parecer sobre a sua potencialidade conjugal. Para a semana volto à floresta, sem o resguardo do miúdo do rugby e do homem do talho.


Bife da Portugália - *

Bife do Café Império - ***

Bife do Toni dos Bifes - ****

Bife do Café de São Bento - ******

Bife do XL - ****

Bife do SNOB - **



Lourenço Viegas

Time Out, n.º 7, 7 Nov. 2007

Contraprovador

  • Lourenço Viegas, 54 anos, é geólogo e crí­tico gastronómico. Colabora semanalmente na Time Out Lisboa. Nasceu em Lourenço Marques e vive no Ribatejo. Tem duas filhas.
Powered by Blogger
and Blogger Templates