Chávena perfeita
Chávenas e chavões
Se o café é a alma, a chávena é o corpo. E nisto dos prazeres que se satisfazem de um trago, o corpo importa sempre mais do que a alma. Beber uma bica não é teorizar sobre os arábicas e os robustas, a montanha azul da Jamaica ou a moagem. É um beber já comer, acto performativo compósito, mistura de orgasmo de masturbação e tiro de caçadeira aos pratos. Rito que vicia, que tranquiliza. E daí a importância da chávena, por onde se pega, se mete na boca e se vê a bica.
Bica é chávena, que café em copo é como vinho em xícara. E dizer chávena é dizer porcelana: bica não é ecoponto, não quer vidro, cartão, plástico ou metal.
Depois o tamanho, que importa e muito, deve ser demitasse (60 ml) e o aspecto, que deve ser branco com uma inscrição de marca de café. Quais bicas servidas em chávenas-banheira (tamanho tazza, 120 ml) ou com arte estampada (como aquele conjunto da Illy que lhe ofereceram no Natal)!
A porcelana deve ser grossa para reter o calor, para não cortar os lábios gostam de agarrar algo carnudo e sólido, nem queimar os dedos que ajudam a sorver a cafeína desfeita no açúcar.
E isto da espessura leva ao peso, que deve andar nos 140 g. A chávena leve demais não inspira confiança, pesada demais, sente-se muito e entorpece o arremesso da bica, que deve ser certeiro, brusco.
Numa forca, o essencial é a relação entre a folga da corda e o peso do condenado; aqui, é a relação entre o líquido (cerca de 29 ml) e a abertura da chávena. Só a PARABOLÓIDE permite a entrada perfeita do café na boca e pára o gole, na altura certa, quando bate na cana do nariz. Mais curta em baixo do que em cima, dá o melhor alçar do café para a boca e mantém a dignidade no último trago. Pirâmides de perfeição, sem concorrência. A chávena PHALUS, flute sem elegância, é aleijona e escorrega da mão, não inclina bem, e acabamos com a beiça pegajosa depois de batalharmos contra este Calippo de café. A DEGRAUS e a FLINSTONES, trambolhos comuns, com um diâmetro semelhante na base e no topo tornam os segundos e terceiros tragos desagradáveis, com o líquido a ficar transparente e um fluir de energia entrecortado em tanta aresta. Mais harmonia, mas os mesmos problemas, tem o PENICO sem graça, a bolacha maria das chávenas.
E tanto havia a dizer do pires, da colher (vade retro pau de canela), do cheiro (que não deve ter, nem a panos, nem a bagaço), da asa, do modo de pegar na chávena...
(os nomes das chávenas são marcas registadas da TO. As imagens são dos autores dos sites linkados)
Lourenço Viegas
Time Out, n.º 2, 3 Out.
Se o café é a alma, a chávena é o corpo. E nisto dos prazeres que se satisfazem de um trago, o corpo importa sempre mais do que a alma. Beber uma bica não é teorizar sobre os arábicas e os robustas, a montanha azul da Jamaica ou a moagem. É um beber já comer, acto performativo compósito, mistura de orgasmo de masturbação e tiro de caçadeira aos pratos. Rito que vicia, que tranquiliza. E daí a importância da chávena, por onde se pega, se mete na boca e se vê a bica.
Bica é chávena, que café em copo é como vinho em xícara. E dizer chávena é dizer porcelana: bica não é ecoponto, não quer vidro, cartão, plástico ou metal.
Depois o tamanho, que importa e muito, deve ser demitasse (60 ml) e o aspecto, que deve ser branco com uma inscrição de marca de café. Quais bicas servidas em chávenas-banheira (tamanho tazza, 120 ml) ou com arte estampada (como aquele conjunto da Illy que lhe ofereceram no Natal)!
A porcelana deve ser grossa para reter o calor, para não cortar os lábios gostam de agarrar algo carnudo e sólido, nem queimar os dedos que ajudam a sorver a cafeína desfeita no açúcar.
E isto da espessura leva ao peso, que deve andar nos 140 g. A chávena leve demais não inspira confiança, pesada demais, sente-se muito e entorpece o arremesso da bica, que deve ser certeiro, brusco.
Numa forca, o essencial é a relação entre a folga da corda e o peso do condenado; aqui, é a relação entre o líquido (cerca de 29 ml) e a abertura da chávena. Só a PARABOLÓIDE permite a entrada perfeita do café na boca e pára o gole, na altura certa, quando bate na cana do nariz. Mais curta em baixo do que em cima, dá o melhor alçar do café para a boca e mantém a dignidade no último trago. Pirâmides de perfeição, sem concorrência. A chávena PHALUS, flute sem elegância, é aleijona e escorrega da mão, não inclina bem, e acabamos com a beiça pegajosa depois de batalharmos contra este Calippo de café. A DEGRAUS e a FLINSTONES, trambolhos comuns, com um diâmetro semelhante na base e no topo tornam os segundos e terceiros tragos desagradáveis, com o líquido a ficar transparente e um fluir de energia entrecortado em tanta aresta. Mais harmonia, mas os mesmos problemas, tem o PENICO sem graça, a bolacha maria das chávenas.
E tanto havia a dizer do pires, da colher (vade retro pau de canela), do cheiro (que não deve ter, nem a panos, nem a bagaço), da asa, do modo de pegar na chávena...
(os nomes das chávenas são marcas registadas da TO. As imagens são dos autores dos sites linkados)
Lourenço Viegas
Time Out, n.º 2, 3 Out.