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28.6.07 

Azia

Azia

Aconteceu, com esta, duas vezes. Saio para rever um restaurante, provo, como, anoto, reflicto, escrevo a crónica e depois apago tudo. Sentia-se ali, em algumas palavras, injustiça, inveja, talvez rancor. A imprecisão dos medíocres, em factos que sei que não podem ter sido bem assim. Claro que o poder do que digo é muito: se disser que a comida não tinha sal, a comida não tinha sal. Se disser que cheirava a esgoto, cheirava a esgoto.
Normalmente resolvo o problema, volto a escrever, volto ao restaurante, ou uso uma das crónicas que tenho em carteira. O problema é que neste fim de Junho não houve tempo para nada disto e teve de ser o crítico e a crítica o objecto da crítica.
É esse o maior risco que corro (para os meus amigos, é o de ser espancado por algum dono de restaurante) – no dia em que perder esta objectividade-subjectiva, no dia em que for injusto, perco a credibilidade perante mim próprio.
O que ainda não percebo é o que é que atira o julgador para o arbítrio. Se eu tivesse um restaurante, dir-se-ia que era o medo de perder comensais, o vil metal, o excremento do Diabo; se fosse cozinheiro, a raiva aos chefes mais talentosos, mais livres; se não fosse reconhecido, o ciúme (o maior reconhecimento do talento dos outros, como alguém disse) pelo reconhecimento alheio. Mas não – nada disto acontece.
Diz-se que os jornalistas são políticos frustrados (acho que é ao contrário, mas enfim), e pode dizer-se que os críticos gastronómicos são cozinheiros frustrados e que em cada crítico musical há um mau violinista, ou um violinista que não foi.
É este o paradoxo da crítica, que, se é feita por quem está dentro, pode tornar-se arbitrária pela inveja e falta de distância; se é feita por quem está de fora, pode sucumbir à frustração de não se estar dentro. Mas este feitiço do objecto da crítica, a paixão pelo objecto, a eventual frustração, são bem melhores do que a crítica feita por quem está no meio, pelos pares, com as suas invejas a erigirem barreiras à entrada. Quando o julgador julga a pessoa e não a coisa, coisifica-se.
Sabendo isto, é andar com cuidado e ter sempre em si o maior objecto de crítica (acha mesmo que é conversa de seminarista?).
É a única coisa que me faz perder o apetite: desconfiar que não fui justo. A injustiça dos outros não me tira a fome. Mas a minha dá-me azia. Uma azia que me queima a liberdade.



Lourenço Viegas

Contraprovador

  • Lourenço Viegas, 54 anos, é geólogo e crí­tico gastronómico. Colabora semanalmente na Time Out Lisboa. Nasceu em Lourenço Marques e vive no Ribatejo. Tem duas filhas.
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