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23.2.07 

António (Perafita)

O peixe e a carne (com aspas)

Casarias com uma mulher com quem estiveste apenas uma vez? À pergunta assim posta, o condicional simples do indicativo a exigir reflexão sisuda, a segunda pessoa a impedir tergiversações, a resposta é não. Vem isto a propósito do António. Salvo seja.
Também não escreveria sobre um restaurante onde estive apenas uma vez. Mas fiz-me assim incoerente, dizendo uma e fazendo outra, e acabei por casar à primeira. Das três vezes.
Foram coisas concretas que resolveram grandes lacunas só aí, quando tapadas, descobertas – e depois, olhar para trás e pensar como era possível sem ti. Como o peixe assado do António, de Perafita, Leça da Palmeira, uma daquelas terras que só existem na Liga dos Últimos.
Isto do peixe assado (que é sempre no forno) andava mal resolvido. Faltava-me um estalão que me aclarasse o conceito por detrás da coisa e desatrelasse o joio do trigo.
Peixe assado é como o sexo. Mesmo quando é mau é bom, quase nunca é muito bom, e quando é muito bom dificilmente nos lembramos de como foi.
Explicando as três ideias (a primeira plagiada, as outras duas originais – há ideias originais?).
Peixe assado tem azeite, batata e cebola, tempo de cocção longo, mistura de sucos – molhanga, vá – para afogar o pão. Como pode ser mau? O peixe, em si, se não for bom, está ali com a função meramente dietética de dar proteínas, fósforo e ácidos polinsaturados. Ficamos sempre satisfeitos, portanto é sempre bom.
É difícil ser muito bom, o peixe assado. Uma questão de equilíbrios instáveis, sensibilidade às condições iniciais, sistemas complexos: o peixe tem de ser fresco, sem ser tão fresco que enrije (como a mulher?), o tomate maduro, verdadeiro, a cebola não muito forte, mas persistente. Mas o mais difícil é sair tudo bem. O problema do sistema. As batatas devem parecer rijas mas ceder à língua, a cebola deve lá estar, mas não matar o suco do peixe, o tomate que apenas se dê por ele cá atrás, quando se abre ligeiramente a boca cheia de comida e se inspira. Tudo envolto por um molho que quer pão, também instável naquele equilíbrio de vinho, mar, gordura (poderá ser só azeite?). E por fim o peixe, que sobre todo aquele artefacto, aquela produção, se deixa comer fresco, naturalmente húmido, a lascar, como se não estivesse estado horas ali naquele forno de preliminares. E o mar tem de lhe estar na pele (como na dos rapazes de Lisboa, de Nava), salgada, complexa, mais rude do que a carne, que, por detrás da maquilhagem e artefactos, tem de ser peixe, suave, inocente.
Também assim caótico é o sistema do sexo: o ponto de equilíbrio que nunca vem entre naturalidade e artificialismo, parecer verdade e ser mentira, audácia e recato.
E o antes e o depois? Umas pataniscas de bacalhau, muito equilibradas em sal, bacalhau e polme, espessura boa, fritura perfeita. Depois um leite-creme a condizer, bem queimado, sem a uniformidade de bledina como se come por aí. Sempre com uma broa espessa, escura. Havia também um polvo, bom.
E quando tudo é perfeito, quando inesperadamente nos dão o que falhava, não é preciso provar mais.
Estava assim o pargo do António. Assim mesmo, mas é difícil explicar melhor porque quando as coisas são muito boas é sempre difícil explicar melhor.

Lourenço Viegas
www.contra-prova.blogspot.com

Melhor: Peixe assado.
Pior: Pode haver, mas não houve.
Pontuação:
**
(Sem estrela - De incomestível a come-se; * - Bom; ** - Muito Bom; *** - Excelente; **** - Excepcional)
António, R. Óscar Silva, 2402 - Perafita - Leça da Palmeira, 229 960 741, fecha aos Domingos, cartões de débito e crédito, 25€ / pessoa.

Contraprovador

  • Lourenço Viegas, 54 anos, é geólogo e crí­tico gastronómico. Colabora semanalmente na Time Out Lisboa. Nasceu em Lourenço Marques e vive no Ribatejo. Tem duas filhas.
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