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20.10.06 

Galeria Gemelli (Lisboa)

Galeria de uma crítica

O Gonçalo, o namorado mais novo da minha filha mais velha – que me chama tio desde que veio cá a casa – quis saber como é que eu fazia estas crónicas. Fiz-lhe a vontade, a propósito da Galeria Gemelli.
Um – a escolha. Não, não é do jornal que mandam rever certos restaurantes: são os sítios onde me apetece ir jantar. Nunca escolher locais onde não tenha ido pelo menos duas vezes, de preferência muitas mais (o jornal só paga uma ida, mas não importa, porque gosto de comer fora), não ir à Segunda-feira, à Sexta ou Sábado, e nunca ir a restaurantes com menos de meio ano.
A Galeria calhava neste quadro e a experiência aconselhava a reservar, sempre em nomes diferentes (dos meus sobrinhos). São sempre quatro ou cinco pessoas, que sabem ao que vão.
Dois – a escolha dos pratos. Aqui, mando eu; escolhas equilibradas, misturando do dia com normais, carne com peixe, etc. Mas sempre que há menus degustação, pede-se o maior. Normalmente sem vinho, que a crítica é de restaurantes, e não da feira de vinhos do Pingo Doce, e assim o orçamento do jornal estica mais. Na Galeria, veio o menu grand-gourmet, que não se pode saber previamente do que é constituído. Não gosto da atitude (eu sei que no Nobu também é assim). Como o escanção é bom (ar de índio, rabo de cavalo e gago – o que deve irritar os michelins), veio o menu de vinho a copo a acompanhar.
Três – a memorização dos pratos e sabores. Tiro notas mentais, escritas na casa de banho se a informação for demasiada, ou no telemóvel como se estivesse a enviar sms. Na Galeria foi fácil, porque o menu surpresa há muito que o tinha visto na internet, tal e qual.
Quatro – análise dos pratos. Apresentação, temperatura (do prato e da comida), cheiro, sabor, textura, coerência interna, coerência com o apregoado, frescura dos ingredientes, testar a sabedoria dos criados (esta ervinha verde é coentros? Ah, são canónigos, não conhecia...). Observar as reacções dos meus convidados. Ser exigente. Na Galeria:
Crepe de camarão com alho francês e molho de tomate fresco (molho vero, bom, quente demais); mil folhas de lavagante com pesto de rúcula e funcho, normal, texturas sem magia; flan de parmesão com redução de soja e espargos do mar (muito bom contraste, empregado chamou soja à salicórnia, enjoativo e salgado para alguns); tortelloni de foie gras e pêras, creme de cogumelos bravos e trufa preta (excelente, a pasta viscosa e encrudada amortecia a leveza do foie; mineralizados pela pêra, no topo os cogumelo, abriam alas para o odor da trufa, um misto de meias velhas (Vir Shangiv, do Hindustan Times) e a bolas de ténis novas (genro)).
Lombo de salmão selvagem da Patagónia, sobre a pele, aveludado de alho francês e Grappa (bom, alguns lombos com gordura a mais)
Lombo de borrego da N. Zelândia, tomate secos e azeitonas, em lombardo a baixa temperatura, má textura e cocção do bicho e um gravy de consistência e aparência pouco recomendáveis, que diziam ser risotto.
Doce picante de chocolate branco e cassis, normal, e uma panna cotta de hortelã que achei enfadonha mas que as miúdas adoraram.
Boa focaccia e outros pães.
Ligo pouco à sala, as minhas filhas mais (na Galeria, é pequena e démodée, a clientela, soturna e à la mode, e a música, de dentista).
Cinco – as estrelas. O sistema de estrelas não o inventei: copiei-o do New York Times. Sem estrela são os restaurantes que não merecem destaque positivo, seja pela má comida, seja pelo facto de esta não compensar o preço ou um serviço pouco profissional. Do um ao quatro são os restaurantes que merecem realce por ordem crescente. A distinção mais difícil é da uma para as duas estrelas, como na Galeria. A refeição última é claramente de uma estrela, não se perdoando o excesso de sal, o borrego, a regulática na ementa, pelo preço altíssimo. Mas em algumas vezes anteriores chegou às três estrelas, que justificam o preço; salomonicamente, fica-se pelas duas.
Seis – o trabalho de casa é escrever a crónica, depois compará-la com as notas dos outros comensais, alguma investigação sobre pratos ou ingredientes (evitar despejar ementas e preços, estilo pastelento, dados inúteis); durante a semana, recusar os convites por email de restaurantes para menus de degustação, ou as ofertas de caixas de garrafas de vinho, explicando que só pode haver crítica gastronómica séria quando os críticos não aceitarem essas simpatias (é espantosa a surpresa e insistência de algumas empresas...); ler as secções de comida de quatro ou cinco jornais estrangeiros e uns quantos blogs sobre o tema.
É claro que por vezes tudo isto se estranha, que recebo hate mail (um para cada três de apreço) e que sei que nunca verei uma crítica minha na parede de um restaurante. Nada disto admira, num país em que os críticos não são anónimos e padecem de hiper-generosidade benigna, e onde parte do baronato da restauração se habitou a servir sem ser questionado e a ser promovido com caras produções fotográficas em revistas de estilos de vida. Não, Gonçalo, não acho que é desta que me aparece uma cabeça de cavalo na cama. Mas se vier, que tenha estado em salmoura pelo menos três dias.


Melhor: Tortelloni de foie gras e pêras com trufas.
Pior: Irregularidade da qualidade entre pratos para o nível de preço.
Pontuação: **
(Sem estrela - De incomestível a come-se; * - Bom; ** - Muito Bom; *** - Excelente; **** - Excepcional)
Galeria Gemelli, Rua de S. Bento, n.º 334 (Lisboa), 213 952 552, 12h30 – 14h30; 20h00 - 00h00, encerra seg e sab ao almoço e dom, cartões de débito e crédito, 80€ / pessoa.

Contraprovador

  • Lourenço Viegas, 54 anos, é geólogo e crí­tico gastronómico. Colabora semanalmente na Time Out Lisboa. Nasceu em Lourenço Marques e vive no Ribatejo. Tem duas filhas.
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