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22.9.06 

Sud-Expresso

Pouca terra, muita fome

Misturar conhaque e trabalho é quase tão mau como a expressão em si (a origem quarteleira, a hipocrisia de quem a usa). Mas desta vez não a quero evitar. É que não voltarei a jantar no Sud-expresso tão cedo.
O jantar é bife e são vinte euros tudo. Mas é melhor ir já que senão depois não há. Lá fui, a correr, comer a oferta monopolista, que a etapa Pampilhosa – Nelas tinha-me feito alguma fome (da janela vê-se o Pampigym – será que tem o mesmo ambiente de euforia/depressão e a péssima comida do clube VII?).
O contexto: publiquei há uns anos, em revista da especialidade, um estudo sobre a exploração petrolífera no ultramar, durante o Estado Novo. Por genuíno interesse, ou pelo exotismo de ter um português a falar sobre petróleo, quiseram agora da Universidade de Bordéus que apresentasse o tema numa conferência sobre a escassez do petróleo e as opções políticas da sua exploração (não, não começa aqui um chorrilho de banalidades e hipérboles sobre os vinhos da zona – que acho cada vez piores e mais caros, sem querer tocar rabecão). De Portugal, foi também a Becas (petit nom fictício, a lembrar o verdadeiro), gestora (sic) de uma grande empresa nacional na área. Troca de emails para coordenar as apresentações e a duas semanas da partida ela teve uma ideia: podíamos ir de comboio como um statement (sic) sobre a escassez do petróleo. É que os comboios gastam menos. E podemos até jantar a bordo. Claro que aceitei, querida, na minha idade já não posso perder oportunidades de ser ridículo e, sim, já ia a pensar no que ia escrever aqui.
Sopa em chávena, cor de cenoura, losangos de feijão verde, gotículas de gordura, podia ser um hospital, uma prisão ou a área de serviço de Aveiras.
O bife muito enervado, mas franco, com uma batata cozida a surpreender, que partia bem com o lado do garfo (eu sei que nunca gostou que eu fizesse isso, que pareço os homens que faziam a vindima do seu pai, mas é dos gestos que mais gosto, um garfo na batata fumegante, de lado, no fim dos dentes, lentamente para baixo a abrir a batata e depois, mesmo antes de tocar no prato, legerdemain, pivoteia numa perpendicular da base dos dentes ao prato e a parte da batata que queremos comer fica já no garfo a caminho da boca... isto tudo sem esfaqueá-la, nem picá-la qual touro em Las Ventas com um garfo de inox de feira).
Enquanto a carruagem basculava em tremenda chiadeira, a faca falhava aquele tendão teimoso que prendia a garfada futura ainda à vaca no prato. Como a minha tia Delita com parkinson avançado (a quem dizíamos oh tia espalhe aqui a canela no pastel de nata), tornava-se difícil acertar na couve-flor.
A couve-flor bem escorrida e não sobre-cozida, um ícone de refeitório. É agora que ela fica melhor, de Setembro a Dezembro (Borda d’Água, comprado a ucraniano no Porto). Será que na CP servem deliberadamente cozinha saison?
Sobremesa, havia doce ou fruta: uma laranja (ai à noite mata?), um ananás que parecia de cores sadias, ou uma tarte de coco a saber a qualquer coisa entre o bom e o nada.
A falta de sabor da tarte, compensada largamente pela simpatia portuguesa dos empregados, dançarinos com tourette, que servem à inglesa ao gingar da carruagem.
No pequeno-almoço, croissants muito falsos (em Portugal o croissant puxa sempre a pão de leite), uns pacotes de manteiga normais e umas compotas da Casa de Mateus, retábulos de infâncias termais, nas quais falta o aviso não contém frutas naturais.
Tudo tinha piada se um Entroncamento - Hendaye, e volta, não custasse, num compartimento com a Becas, 200 euros por pessoa, para além dos bilhetes que ao longo da vida tenho pago em impostos neste pior comboio da Europa (não, querida, não percebo a nostalgia ou beleza dos comboios). Dizem que a CP e a Refer têm um passivo de 5% do PIB, mas eu não acredito. Os 20 euros por pessoa daquele jantar, já há muito que deviam ter equilibrado as contas - caso contrário, mais valia que o oferecessem.
E entre goles do café, de termos, muito queimado, lia no cimo do vagão: Sorefame, Lobito – Lisboa – Amadora, 1963. Uma alusão premonitória ao petróleo que não explorámos e ao eixo onde o iríamos gastar (sim, o IC 19).


Melhor: A batata cozida.
Pior: O resto.
Pontuação: Sem estrela
(Sem estrela - De incomestível a come-se; * - Bom; ** - Muito Bom; *** - Excelente; **** - Excepcional)
Sud Expresso, Lisboa- Hendaya / Irún - Lisboa, todos os dias, 20h00-21h00, não aceita cartões, 20€/pessoa, mais preço do bilhete.

Contraprovador

  • Lourenço Viegas, 54 anos, é geólogo e crí­tico gastronómico. Colabora semanalmente na Time Out Lisboa. Nasceu em Lourenço Marques e vive no Ribatejo. Tem duas filhas.
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