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8.9.06 

Terreiro do Paço (Lisboa)

O grande chefe

Uma vez, no restaurante da Bela Vista, no tempo do Vítor Sobral, um empregado a meio da refeição abeirou-se da mesa e perguntou: então, o comer está bom? O comer. Ligeiro esgar da minha companhia, um inclinar de cabeça, contracção quase completa de lábios (finos), com maxilares e olhos cerrados, como só as loiras sabem fazer. Talheres arrumados, com a ponta dos dedos (finos) a fazer deslizar o garfo no sentido contrário ao dos ponteiros do relógio até à posição bem-educada, como quem junta as pernas de um morto para lhe dar decência, e o polvo ali no meio, sem perceber o que se passara. Tinha perdido o apetite. Comi o meu comer, o comer dela e pouco tempo depois perdi o apetite por ela.
M. não tinha percebido que num restaurante onde cozinha o Vítor Sobral a comida pode bem ser o comer. Porque o comer é mais básico do que a comida, mais sincero e melhor. Sobral percebeu isso e desde sempre que cozinha Portugal. Basta ver o carpaccio, tártaro e mousse de bacalhau com azeite e vinagre (a lembrar um excelente menu todo ele de bacalhau), ou empurrar o bacalhau à braz contra o céu da boca para se perceber que quem cozinha sabe e gosta de comer. Ou os pastéis de bacalhau completos, ou os com ovas dentro, mas que também já foram desconstruídos com uma precisão palatal desarmante.
Felizmente, os empregados de Sobral hoje já não perguntam pelo comer, começando a estar resolvido um problema que sempre assombrou as casas do chefe: o casting e a direcção de actores sempre abaixo da qualidade da comida.
Sobral é um daqueles cozinheiros que chuta o restaurante-local para uma fungibilidade sempre iminente, um estou aqui mas podia estar ali que os clientes vinham comigo.
E o Terreiro-do-Paço-local nem é dos melhores sítios de Lisboa: sem vista, sem estacionamento, espaço mal distribuído em cima, com pouca luz em baixo, autocarros a passar e nós ali encafuados num privado espartilhante. É mais digno que a Bela Vista, mas é menos Sobral.
Miguel Castro e Silva é o Eça de Queiroz da cozinha portuguesa, mas Vítor Sobral é o Camilo Castelo Branco. Sobral arrisca com o que a terra lhe dá, o vernáculo que sabe puxar. Como Camilo não é perfeccionista, não tem medo de falhar. E, quando falha, não insiste nos erros. Sabe que só se pode sacar um Eusébio Macário com muitas Estrelas Funestas.
É que não é à primeira que sai um creme de ervilhas e coentros, lavagante, azeite e aroma de baunilha: a cama das ervilhas, o ferrão dos coentros, o lavagante a deixar morder-se drogado pela baunilha. Tanta criatividade que pode redundar em paradoxo: as costeletas de borrego - as melhores que já comi, cocção perfeita, a carne muito saborosa, com forte sabor a borrego mesmo antes de entrar o bedum, o sal por fora... - vinham com um copo no prato, de caldo não sei se de cozer o borrego, que não fazia qualquer sentido.
Sobral nunca é banal. A temperatura - tão importante na comida como numa mulher. Sobral domina-a como ninguém, o quente, o frio, o morno, o quente e o frio, o tépido, o assim-assim (M. tinha um morno brando distribuído desuniformemente, nada que se compare com o queijo de cabra tépido, num cartuxo de massa estaladiça, com um creme de tomate anisado).
Como os velhos de Brel, que mesmo que vivam em Paris vivem sempre na Provença porque cheiram a lavanda, a comida de Sobral é sempre rural. Como ele.
Acabará, porque é nómada, por sair de Lisboa (e aqui o crítico empolga-se, julga-se Maya). Vejo-o no campo, espaço rústico e caro, leve cheiro a madeira ardida, onde a carne saia a estalar de um forno de lenha, onde os enchidos escorram das paredes, onde os carros bons tenham um lugar, mesmo atrás do celeiro, mas os administradores lá do banco tenham de carimbar a refeição com um pingo de lama nos Churches.
Tão bom na carne como no peixe, pensar-se-ia que vinha banal a sobremesa, mas esta é tratada como comida a sério (como uma irmã criada entre muitos irmãos - sim, eu sei, já me disse que abuso dos parêntesis, que corta o ritmo, que a escrita parece bipolar... pois é, mas gosto desta forma soluçar, do Carlos de Oliveira e do Eminem).
O crème brûlée de coco com ananás e pimenta verde é poder comer a voz da Carla Bruni, uma acidez doce arrastada, interrompida por leves picadas no trigeminal.
Mas não é só no fazer a comida, ou o tal comer, que Sobral está no topo. A vantagem sobre a concorrência está no instinto com que antecipou anos: cursos, consultorias, ligações institucionais privadas e públicas, de Sampaio (para quem cozinhou e de quem recebeu uma condecoração) à Bimby (que diz usar! – o que é tão verosímil como a Paula Rego pintar com aquelas esferográficas bojudas de quatro bicos, cada um a escrever com a sua cor, que oferecem nos congressos dos médicos). Até trouxe o peixe-galo para os pratos quando noutros restaurantes deviam julgar ser um tipo de capão.
Claro que nem tudo correu bem: os livros mereciam um tratamento (foto)gráfico muito superior, e na TV, de que não precisa, Sobral é o anti-Jamie Oliver (sim, querida, é aquele do Oliveira da Serra).
A cozinha de Sobral é humana por não ser perfeita, evolutiva por ser perdulária, recusando fixar-se nalguma das várias fórmulas vencedoras que já inventou.
E com o café na mesa, não há vez que não me lembre do Pedro Barbosa, de quem o Quinito disse que se pudesse comprava o passe para o ver jogar só para ele. Mas o grande chefe já há muito é dono do seu próprio passe.

Melhor: Costeletas de borrego.
Pior: O espaço, não tão bom quanto a comida.
Pontuação: ***
(Sem estrela - De incomestível a come-se; * - Bom; ** - Muito Bom; *** - Excelente; **** - Excepcional)

Terreiro do Paço, Terreiro do Paço, Lisboa, Tel: 210 312 850, 12h30-15h00/ 20h00-23h00, Sáb. só almoço, encerra Domingo, aceita cartões, 50€/pessoa.

Contraprovador

  • Lourenço Viegas, 54 anos, é geólogo e crí­tico gastronómico. Colabora semanalmente na Time Out Lisboa. Nasceu em Lourenço Marques e vive no Ribatejo. Tem duas filhas.
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