« Home | Sud-Expresso » | Terreiro do Paço (Lisboa) » | Teatro Nac. S. Carlos (Lisboa) » | XL (Lisboa) » | Clube de Jornalistas (Lisboa) » | Lucca (Lisboa) » | La Moneda (Lisboa) » | Bull & Bear (Porto) » | Valle Flôr (Lisboa) » | Luca (Lisboa) » 

6.10.06 

Café de S. Bento (Lisboa)

São bentos bifes

Sei o dia em que tudo acabou. Foi quando a ouvi dizer ele, que era eu, só gosta de bifes.
Respeito os outros em tudo, excepto no gosto, e por isso não gosto de quem não gosta de bifes, nem de quem só gosta de bifes. E muito menos de quem diz que só gosto de bifes.
Ela rosnava-grunhia sempre que sugeria que fôssemos ao Café de S. Bento. Não percebia o porquê daquela sala acanhada, encafuados em cadeiras de casas de bonecas, dos empregados trajados como se fosse uma pastelaria da Baixa, da meia-luz, da falsa intimidade. Perguntava por que é que não podemos comer um bife noutro lado qualquer, numa esplanada, ou num restaurante normal.
Nunca percebeu que era pelos bifes, por aqueles bifes, e só pelos bifes.
O bife é uma realidade trinitária. Bife é a carne e as batatas, unidos pelo molho, harmonia perfeita, impossibilidade de gostar mais de qualquer dos elementos do que do outro por mais de um breve segundo, as batatas a pedirem aquele bife, e o molho a manter o flow da batata ao sangue.
As texturas: a do bife, com a carne a ceder ao dente depois de fingir que lhe resiste (como a Tchen na Condição Humana); a das batatas a estalar apenas o suficiente que as não impeça de rapidamente sucumbirem ao aveludado do molho.
Ao fundo da boca, na base da língua, os bifes do Café de São Bento deixam um travo férreo, do sangue da carne e talvez das velhas frigideiras cujos despojos comemos pouco a pouco. E aquele travo metálico (como de um lábio que sangra num beijo desajeitado) precipita a garfada seguinte.
No fim, o molho, já ensanguentado, foge aos pedaços de carne no garfo e pede ao pão – que podia ser melhor – que o leve para boca.
Eu gosto é destes bifes, que os não há em mais lado nenhum...
Quem só gosta de bifes, não gosta de bifes – e isto, ela não percebeu. Quem só gosta de bifes, gosta de bifinhos (com champignon), de secretos na brasa (talvez) e, horror dos horrores, de bifinhos de peru (que também já é preto, como o porco). E quem só gosta de bife, quando come um bife verdadeiro, gosta dele bem passado, ou o que é o mesmo, médio-bem-mas-sem-sangue.
Claro, querida, que não vou pôr-me com aquela conversa de que o bife tem de ser mal passado, que quem pede bem passado estraga o bife. Nem vou dizer que dizem que nas cozinhas os cozinheiros cospem nos bifes que são mandados para trás para passar melhor, ou os esmagam com o fundo da frigideira, muito negra, enferrujada. Eu sei que você manda para trás, que lhe faz impressão, que dizem que faz mal. Não vou dizer nada disso. Porque não é preciso.
O que mais espanta no Café de São Bento é que há gente que ali não vai por causa dos bifes, mas para ter as conversas adequadas para a mesa do lado ouvir (eh pá – tom sobe - aqui entre nós, o Sócrates ligou-me a dizer que... – tom desce - ...).
E nisto do ambiente, ela tinha razão. Mas também há quem lá esteja só pelo bife. Na escala de Galeto (que mede a heterogeneidade da fauna que frequenta um restaurante), o Café de São Bento tem pontuação alta. Não é só o jovem partidário, recém-eleito deputado, de sapato cortado à frente e óculos à Rui Santos; são também alguns jornalistas da velha guarda, grupos de betinhos que vivem ao virar da esquina, famílias a regressar do Alentejo, alguns patos bravos e um ou outro casal que sussurra e troca carícias como se estivesse num local reservado. E isto lembra a imagem de intimidade e reserva que muita gente associa ao Café, que não existe (a não ser talvez numa mesa junto ao WC, mas por onde passam todos os clientes que a cerveja incomoda, e que nos contemplam demoradamente quando voltam à sua mesa aliviados).
Com ou sem ovo, o bife?
Dizem que no Café de São Bento o ovo vem perfeito, na forma, no sabor, na conjugação. Mas nunca me atrevi a pedir. Como não pediria a uma bela mulher que se vestisse de enfermeira.



Melhor: O bife.
Pior: A manteiga muito gelada.
Pontuação: **
(Sem estrela - De incomestível a come-se; * - Bom; ** - Muito Bom; *** - Excelente; **** - Excepcional)
Café de S. Bento, Rua de S. Bento, n.º 212 (Lisboa), 213 952 911, 12h30 - 15h00; 19h30 - 02h00, não encerra, cartões
de débito e crédito, 30€ / pessoa
.

Contraprovador

  • Lourenço Viegas, 54 anos, é geólogo e crí­tico gastronómico. Colabora semanalmente na Time Out Lisboa. Nasceu em Lourenço Marques e vive no Ribatejo. Tem duas filhas.
Powered by Blogger
and Blogger Templates