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17.11.06 

Cervejaria da Trindade (Lisboa)

O eterno retorno

A vida toda tenho ouvido: Lourenço, veja lá que há coisas que não se dizem assim. O problema é que muitas vezes há coisas que devem ser ditas e não há razão para dourar a pílula. Como é que quer que descreva o molho do bife da Cervejaria Trindade? Já lá vamos. E sim, eu sei que a Cervejaria é “da” Trindade.
Cervejaria é um substantivo masculino. Sei que a dicotomia masculino-feminino é criticável e não está na moda. Mas não é apenas por isso que digo que as cervejarias são masculinas: é também porque não conheço nenhuma mulher que goste de cervejarias. Tenho uma teoria: o problema começa no nome e acaba na coisa.
Se se chamassem enotecas, bistros, simplesmente restaurantes, ou até marisqueiras, a resistência feminina seria menor. E depois, elas não gostam de cerveja, nem de mau bife, nem de marisco a granel, nem de ver, com alguma razão, trezentas pessoas, a chupar patas de santola, ou a sorver amêijoas com uma inclinação de cabeça estudada para que não se perca nada do molho, ou molhinho.
Eu percebo. Numa cervejaria, nunca se come bem, o ambiente nunca é sofisticado, ou pelo menos delicado, e os preços podem resvalar para o nível de um bom restaurante. Nas cervejarias, somos confrontados com a nossa boçalidade: os homens fingem que não vêem, ou gostam, elas não conseguem deixar de ver e censurar - é o subjectivismo objectivo feminino. Mas como eles ainda escolhem muito onde se vai comer, a Cervejaria Trindade continua cheia. E continua também porque as cervejarias são uma sina magnética da qual é impossível fugir – um fado da família portuguesa. Quem consegue hoje afirmar, com honestidade, que durante o ano de 2007 não comerá pelo menos uma vez na Portugália ou na Trindade? Ninguém.
Então e o tal bife?
Não vale a pena adiar. Mas é tão difícil descrever a consistência e aparência do molho do bife da Trindade que me foi servido sem utilizar uma imagem que aluda a uma impressão textural e cromática de sémen ou expectoração... Vou tentar:
O bife, ali no meio de uma coalhada gelatinosa gingante, ora prateada ora de um castanho leve, acentuando fissuras que representam uma transição do líquido para o estado purulento. O bife em si, dizem que estava comestível. Estaria, mas não foi fácil abstrair do seu baço aspic seminal.
Até dizem que há restaurantes em que fazem coisas feias aos pratos. É o mito do molho à chefe: v., por exemplo, a história da ejaculação nas tartes servidas à actriz Diana Dors, num hotel de Dublin, relatada este Verão no The Observer e no livro Kitchen Con de Trevor White, ou os feitos espalhados pela obra do Anthony Bourdain... mas na Trindade não têm estudos para isso. Na pior das hipóteses, era uma orgia de maizena e gordura.
A açorda não estava melhor: pão muito desfeito, uma cerelac gelatinosa desmaiada, uns camarões que pareciam artificiais, um sabor desbotado.
Valeu o caldo-verde, no limite do abatatado, com boas couves e um chouriço forte a salvar o pleno desastre. No fim, um ananás, montado numa casca muito deslavada, ligeiramente fibroso, num arrimo tropical deslocado, como enfeites havaianos na praia de Espinho.
Salada de frutas, bica, conta e sair.
O Pavese dizia que não há nada pior do que voltar a um sítio onde já fomos felizes. Não sei se não é pior saber que vamos voltar a um restaurante onde comemos sempre mal.

Lourenço Viegas

Melhor: Caldo verde.
Pior: Bife.
Pontuação: Sem estrela
(Sem estrela - De incomestível a come-se; * - Bom; ** - Muito Bom; *** - Excelente; **** - Excepcional)


Cervejaria da Trindade, Rua Nova da Trindade, 20 (Lisboa), 21 342 35 06, 12h00 –02h00, encerra feriados, cartões de débito e crédito, 17€ / pessoa.

Contraprovador

  • Lourenço Viegas, 54 anos, é geólogo e crí­tico gastronómico. Colabora semanalmente na Time Out Lisboa. Nasceu em Lourenço Marques e vive no Ribatejo. Tem duas filhas.
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