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3.11.06 

Pap’Açorda (Lisboa)

Saber envelhecer

Gosto e não gosto de mulheres que envelhecem bem. Gosto do charme, tranquilidade e segurança com que falam e pisam e arrumam a concorrência mais fresca. Não gosto da arrogância que isso traz, um feminismo ostensivo nascido da oposição com as outras, como um central de quarenta e dois anos, indiscutível no Milan e que não precisa de correr tanto para cortar as bolas.
O Pap’Açorda é, naquilo que tem de bom, a Teresa Patrício Gouveia dos restaurantes lisboetas que com charme, astúcia e instinto é e está na moda sem parecer querer estar na moda.
É um restaurante sem chefe, rebelde à chefocracia que se instala (esta, por vezes com acerto, por vezes patética), que não tem pretensões de se adaptar, inventando coulis de bagas silvestres para estragar os pratos, mas que impõe as suas convicções cartistas através de uma arrogância gastronomicamente cultivada.
A ver se explico, a propósito dos filetes de sardinha. Na Cervejaria Trindade, não podem servir filetes de sardinha: quem lá vai não gosta (sardinhas é no Verão, em Lagos) ou quem gosta e lá vai não é para isso. Ou seja, não bate a bota com a perdigota. Mas no Pap’Açorda bate e os filetes de sardinha são cool: porque aquele ambiente torna chique a matéria-prima, com o toque de mágica de filetar o bicho. É claro que o Pap’Açorda, raposa velha, antecipou a finta do avançado, pois sabe que a sardinha está hip (o fenómeno back to roots - todos temos um tio conhecido por nunca comer menos de vinte e quatro sardinha -; e o fenómeno healthy: o ómega-3 é o melhor que há para o coração). Isto tudo aliado a um baixo food-cost faz com que os filetes de sardinha surjam com naturalidade. Os filetes em si não fizeram jus à atitude que os escolheu, muitos deles espapaçados demais.
Também envelhece bem com o restaurante a açorda com ou sem lagosta, saborosa, feita de bom pão (pão e água de qualidade é o segredo da açorda), bem mexida. Açorda que ainda busca no paladar uma farinheira bem escolhida que fez de entrada com peixinhos da horta que não envergonham.
As ovas panadas, esmagadas na língua enquanto, serendipity, na mesa ao lado uma família blasée, muito snob mas de esquerda, discute porque vai votar contra o aborto.
A arrogância residual e contida do Pap’Açorda é uma imagem de marca perdoada à conta do status de alma mater da moderna restauração portuguesa. Também pela mesma tabela, os preços demasiado altos não afastam clientes, nem a falta de estacionamento.
É o traço de uma cultura pop, de um bairro alto que nos anos oitenta nunca foi o que hoje se diz que foi, mas que todos acreditamos e dizemos que existiu.
Só sabe envelhecer quem prestou para alguma coisa em jovem, quem não teve medo de investir e de fazer a moda num país atrasado com uma taxa de inflação que já só vemos nas notícias nas Honduras.
Tal como uma cinquentona que todos os verões veste out of africa, mergulhamos no Soho dos anos oitenta para comer comida portuguesa, concerteza.
O serviço é bom e exigente, mas os empregados vão perdoando algumas falhas aos clientes. É claro que tudo é um programa de formação: os non-habitués são colocados no pátio coberto e treinados por empregados para que um dia possam sentar-se ali mesmo à entrada, junto do balcão, perto da mesa dos donos.
É que mulheres que sabem envelhecer, por mais distantes que pareçam, cativam pelos raios de doçura que inesperadamente soltam da atraente carapaça gélida. É a mousse de chocolate no fim, única, a valer uma estrela.
O Pap’Açorda é um espelho do Portugal contemporâneo que ajudou a criar. Vinte anos em duas salas, atitudes irreverentes ontem, hoje banalizadas e aceites, e um PIB per capita maior. E olho para o lado e vejo uma mesa de homens, visivelmente artistas e sobriamente homossexuais, que também terão envelhecido bem, e vem-me à memória o Groucho Marx que um dia disse finalmente posso levar a vida que sempre levei.


Melhor: Açorda, mousse de chocolate.
Pior: Preços altos, filetes de sardinha espapaçada.
Pontuação: *
(Sem estrela - De incomestível a come-se; * - Bom; ** - Muito Bom; *** - Excelente; **** - Excepcional)
Pap’Açorda, Rua da Atalaia 57 (Lisboa), 213 952 552, 12h30 – 14h30; 20h00 – 23h30, encerra dom e seg, cartões de débito e crédito, 40€ / pessoa.

Contraprovador

  • Lourenço Viegas, 54 anos, é geólogo e crí­tico gastronómico. Colabora semanalmente na Time Out Lisboa. Nasceu em Lourenço Marques e vive no Ribatejo. Tem duas filhas.
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