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22.3.07 

Gambrinus (Lisboa)

O restaurante-divã

Tive um tio que só vestia camisolas interiores da Manutenção Militar. Dizia que se sentia despido sem elas, que era a única peça de roupa por que se interessava. Um dia, lá consegui penetrar nesse mundo surreal dos estabelecimentos comerciais só para militares (também os houve só para bancários...) e comprei uma das ditas camisolas interiores. Era péssima, desconchavada, a etiqueta de metal, algodão plástico, as costuras farpadas. Quando lhe disse isto, respondeu que nunca tinha dito que as camisolas interiores da MM eram boas, apenas que se sentia seguro nelas.
Assim se passa comigo com o Gambrinus, saber que me sinto bem em ir a um restaurante que não gosto, que deixou de fazer sentido, que serve cocktail de gambas e iscas tasqueiras a doze contos por pessoa.
Dilema de crítico, não poder dizer bem do que se gosta e não é bom. Se cremos melhor o nosso que o gosto dos outros (caso contrário, era preciso ter lata para estar aqui), também não podemos desobjectivar o critério de coerência que vendemos. Acha mesmo, querida, que me estou a levar demasiado a sério?
Por que é que gosto e por que é que não gosto.
Gosto do serviço por onde não passou o tempo, os empregados, mecânicos, na barra e na sala, como se não existissem senão ali (existirão?), aparentando conhecer toda a gente, exímios na representação do dar e receber. Gosto daquela carta, imutável, louvresca, com os pratos do dia cravados a máquina de escrever.
Gosto sobretudo do circo dos crepes, no fim, o rei momo malabarista de laranjas e garrafas, sincronia de ópera bufa, prestidigitador de festa de club-med em fim-de-Agosto quando à frigideira tira o fogo, o guarda no bolso, para lho devolver com um sacro sleight of hand que maravilha a sala, sobretudo aquele casal inglês que também vai pedir, no fim, os crêpes, a cinco contos. Sensação estranha, constrangimento, alegria triste, ali em frente ao saltimbanco.
Não gosto da comida, totalmente desfasada dos preços e do estatuto, as carnes piores que os peixes (boa pescada com molho de amêijoa, filetes de garoupa razoáveis), sobremesas banais (ou assim nasceram, ou assim se tornaram, nem sei): semi-frio de avelã com chocolate (daqui a pouco é o brinde aos noivos); o fillet Gambrinus igual a qualquer naco de carne sem história numa qualquer esplanada de café clássico por essa Europa fora; daquele segundo circo do café de balão, quando preferia que viesse o de máquina. Dizer mais sobre a comida do Gambrinus pressuporia que alguém lá fosse pela barriga e não pela alma.
O Gambrinus é o restaurante camaleão onde não temos de ser modernos, um gigante divã democrático que nos reforça a confiança, a preços de psiquiatra de Manhattan, escola Palo Alto. Com lareira.
Para casos mais difíceis, há a experiência da barra, boa para introspecções solitárias enquanto um prego do lombo se derrete na boca, olhar para o lado e pensar esta gente toda não trabalha? ou viverá aqui? É nessa barra terapêutica que os empregados, abbés pierres da Comunidade de Emaús, acolhem cada um com as suas fragilidades.
E quando saímos a cheirar a algodão doce dos crepes, não nos lembramos do que comemos, mas apenas de que fomos ao Gambrinus e de que estamos mais seguros. Sair pela porta de trás, como se não houvesse Rua das Portas de Santo Antão, entrar no carro, guardado naquele larguinho em que é proibido estacionar, excepto cargas e descargas, com a polícia mesmo ao lado, cúmplice, e o saudosismo precoce de um Portugal que está quase quase a acabar.


Lourenço Viegas

contraprova@gmail.com
www.contra-prova.blogspot.com

Melhor: O serviço de reconforto.
Pior: Desadequação qualidade da comida / preço.
Pontuação: Sem estrela
(Sem estrela - De incomestível a come-se; * - Bom; ** - Muito Bom; *** - Excelente; **** - Excepcional)

Gambrinus, Rua das Portas de Santo Antão, 23, 213 421 466, 12h00-01h30, encerra 1.º de Maio, cartões de débito e crédito, 65€ / pessoa.

Contraprovador

  • Lourenço Viegas, 54 anos, é geólogo e crí­tico gastronómico. Colabora semanalmente na Time Out Lisboa. Nasceu em Lourenço Marques e vive no Ribatejo. Tem duas filhas.
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