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8.3.07 

Xanti / Casa de Goa (Lisboa)

O picante

Quando ela me disse que a culpa era minha que tinha votado nele, lembrei-me do quanto hesito em saber se gosto menos das mulheres que gostam muito do Cavaco, se das que não gostam nada. É claro que votei nele (havia de ter votado em qual dos outros?...) e é claro que ele e a esposa não gostam “do picante”.
Foi um dos momentos altos da portugalidade: um presidente e a sua senhora a dizerem, em directo, que o problema na Índia é a pobreza e o picante, que têm comido sobretudo arroz, pão e iogurte (se deixasse a minha amiga sugerir uma frase, entraria aqui uma alusão à falta de bolo-rei na Índia). E a simples utilização da expressão “o picante” e a entoação que lhe dão falam por si.
Cavaco, naquela afirmação, foi Portugal e o seu racismo inconsciente, a vontade de que tudo saiba a refogado, a negação da diferença gastronómica e muita ignorância bonacheira.
É que não há maior contradição do que fazer uma visita de Estado (podia pôr um ponto final aqui?) em que o conceito mais elaborado propagandeado foi o da globalização iniciada pelos portugueses e depois dizer que o pior é o picante. É que o picante é a globalização, os chillies levados da América do Sul para a Índia, primeiro para o sul e depois para toda ela. Se a comida da Índia (e de todo o Este) é picante, a culpa é nossa. E essa é das culpas colonialistas com que podemos viver melhor.
Os portugueses têm vistas largas e bocas curtas. Por isso, quando chegaram à Índia, a primeira coisa que fizeram foi mudar a comida, desatar a comer vaca e porco, chouriços e entrecostos. E já agora, inventar uma espécie de bagaço, o feni, de caju ou seiva de palmeira. (É um facto histórico extraordinário a introdução do consumo de vaca e porco, contra-natura para os hindus e muçulmanos, ter resultado nos territórios onde estiveram os portugueses e não ter tido qualquer efeito assinalável nas áreas de influência britânica).
Mas por cá, no Xanti, na Casa de Goa, Sebastião, entre a simpatia e o pushy, vai servindo, para quem não tem medo do picante, uma carta de culinária goesa (ou, melhor, indo-portuguesa, porque em Goa há muito mais quem coma só verdes).
Uns bojés, raro exemplo de souplesse na cozinha destas paragens, uma massa (tenra) com batata e muitas especiarias.
Um bom caril de gambas, muito amanteigado, as gambas de tamanho médio e cabeça suculenta. O sarapatel, de porco com sangue e fressura, um sarrabulho orientalizado. Um bom vindalho, como indica o nome, de carne em vinha d’alhos, sabor avinagrado. Outro marco globalizante: a introdução do vinagre em terras onde não há vinho (mistério da gula).
Tudo gravies de sabores fortes, fechados, concentrados e ricos (adjectivação não redundante), aquilo que o presidencial casal chama “o picante”. Picante que não é nada picante, se comparado com o picante do sudeste asiático ou de alguns pratos mexicanos.
Na Casa de Goa, o cliente sente-se bem: não só consegue estacionar o carro, como consegue ir tendo Goa na boca sem o desconforto do Cantinho da Paz, um dos mais lúgubres restaurantes que conheço.
E com bebinca a derreter na boca, o corpo cansado do picante, é de pensar quão melhor teriam sido uns iogurtinhos com arroz branco. E matutar naquela tirada final de Cavaco, “eles devem sentir que nós somos um pouco anormais.” Longe disso, Senhor Presidente.

PS – À Marcelo, recomendo a leitura do excelente “Curry” de Liz Collingham, Random House, 2007, 318 pags, que me foi oferecido por A. Correia. A verdadeira história do picante.

Lourenço Viegas

contraprova@gmail.com
www.contra-prova.blogspot.com


Melhor: Caril de gambas.
Pior: Os “pães indianos” tinham obrigação de ser melhores.
Pontuação: *
(Sem estrela - De incomestível a come-se; * - Bom; ** - Muito Bom; *** - Excelente; **** - Excepcional)
Xanti (Casa de Goa), Calçada do Livramento, 17, 213 930 171, 12h00-15h00 / 19h30-23h00, não encerra, cartões de débito e crédito, 25€ / pessoa.

Contraprovador

  • Lourenço Viegas, 54 anos, é geólogo e crí­tico gastronómico. Colabora semanalmente na Time Out Lisboa. Nasceu em Lourenço Marques e vive no Ribatejo. Tem duas filhas.
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