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18.5.07 

Kais (Lisboa)

Engodo no cais

Gosto muito de engenheiras. Civilizadas ou não, me encanta saber que estou com alguém que sabe levantar uma parede – quase tanto como ter inflectido a ordem do pronome. Mas tenho tido pouca sorte. Pobre geólogo, que apenas sabe de calcários, não é petisco para elas. Mas há poucos anos tive uma ao largo, que a parca beleza aí deixou, mas não sem semanas, meses, de hesitação. Sabendo que gosto de comer, recorrentemente, melhor dizendo, obsessivamente, me queria levar a jantar ao Cais. E sempre que o mencionava – eram conversas de telefone fixo, noite alta – falava das treliças. E eu procurava na Maria de Lourdes Modesto, no Pantagruel e treliças nada. E que lá tinha ido com os clientes estrangeiros, do consórcio, e até eles tinham adorado as treliças.
Ela, que era de Lisboa, como todas as mulheres de Lisboa, tinha um vernáculo limitado, apenas sacudido com as ditas treliças.
[Elipse espácio-temporal].
A coisa morreu. Acabei por perceber que Cais era Kais e que não tinha nada a ver com a mendiga revista. E estou sentado num armazém imenso, com uns conhecidos estrangeiros (voilà) – uma lista gigante na mão e não encontro as treliças. Eu que nem tinha sugerido irmos a outro lado, só para provar as treliças.
No Kais, tudo é dolorosamente lento, caro e mau. É claro que se pode falar da decoração, da reconversão do armazém antigo, das oliveiras, das ventoinhas pretas no tecto, ou dos candelabros. Mas isso é para a Architectural Digest, que aqui a digestão é mesmo da comida.
No Kais não sei se é pior a espera, se a prova. Numa mesa esquecidos, a ver as velas e as correntes, um confronto arrastado com casais e grupos de estrangeiros que ali desembarcaram depois de lerem um qualquer guia pouco rigoroso. Pratos que já não há (mas que só o sabemos passados vinte minutos de o pedirmos), pratos trocados. Um tremendo equívoco.
Sopa de lentilhas, sem sal nem graça; uns espargos com má cor, perdidos num prato, nem grandes nem pequenos, com um molho tártaro razoável (nota: guardar ref.ª cheiro espargos na urina para próx. crónica). Um polvo afogado em azeite trufado (com pimentos) bem melhor que umas vieiras com salada feira-popular.
Não sei se tive mais pena dos casais de estrangeiros, se do porco a quem arrancaram as bochechas para as mergulhar numa redução que parecia de xarope de groselha Altoviso.
No peixe-galo, uma surpresa na camada de choquinhos com tinta, bem feitos, que ladeavam o capão dos mares demasiado salgado.
Bacalhau de meia-cura (e dobro-do-sal), €29!, cuja textura de corte (o modo como cedia ao garfo) era de melocoton de lata grande, e ao dente lembrava a última fatia de bolo mármore deixada na mesa depois da festa de anos, um dia depois, a esfarelar de ressesso.
Tornedó com molho de queijo de Azeitão, a carne e o queijo sem qualquer ligação afectiva, num chulé desagradável (que nisto da comida há muito chulé que é agradável). Vinha com puré de aipo e castanhas, pesado, feio, sem sentido.
Duo de cremes queimados, ligeira camada de leite-creme sobre uma coisa qualquer escura, doce e má (puré de caramelo? De castanha? Cacau?).
E tanto walkie talkie, auricular, tanto cenário para um filme tão mau.
Enquanto pensava no mote para a crónica (só mesmo quem gosta de pagar para levar uns açoites. Três horas, cinquenta euros. Velas, correntes, masmorras. Estacionamento fácil), uma das mulheres da minha mesa diz: e o Lourenço, gosta da decoração? É Salavisa (sem da). Gosto, gosto. E estas treliças? Olhou para cima e apontou para o tecto, para uns ferros. E, quando eu ia a descobrir o que são treliças, o marido repreende. Alguma vez na vida isto são treliças!?! Volto a casa, com muitas dúvidas. Sem saber o que são treliças e como é que um local daqueles consegue tantas críticas positivas na imprensa estrangeira (não arquitectónica).



Lourenço Viegas

contraprova@gmail.com
www.contra-prova.blogspot.com


Melhor: Os choquinhos com tinta que acompanham o peixe-galo.
Pior: A lenta espera por má comida.
Pontuação: Sem estrela
(Sem estrela - De incomestível a come-se; * - Bom; ** - Muito Bom; *** - Excelente; **** - Excepcional)


Kais (Restaurante), Rua da Cintura, Santos, Lisboa, 213 932 930, 20h00- 24h00, encerra Domingos, cartões de débito e crédito, 50€ / pessoa.

Contraprovador

  • Lourenço Viegas, 54 anos, é geólogo e crí­tico gastronómico. Colabora semanalmente na Time Out Lisboa. Nasceu em Lourenço Marques e vive no Ribatejo. Tem duas filhas.
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