« Home | Caracol (Lisboa) » | Il Gattopardo (Lisboa) » | Gambrinus (Lisboa) » | O video do picante » | Xanti / Casa de Goa (Lisboa) » | António (Perafita) » | Salsa e Coentros (Lisboa) » | AnosmiaHoje não há circo. O urso está constipado. ... » | Montanhas do Cávado (Louredo/ Vieira do Minho) » | Gôndola (Lisboa) » 

4.5.07 

Aleixo (Porto)

Dissonância cognitiba

Ia acontecer. Um dia, o crítico seria tolhido por bons sentimentos. Não, não se trata de rever uma classificação, ser sensível aos emails que recebe com o choradinho do que custa ter bons restaurantes em Portugal ou ao apelo de dizer melhor do nosso país. Nada disso.
A única sensibilidade que está ao alcance de um crítico gastronómico é comover-se perante a fome. Li isto uma vez em M.F. K. Fisher, acho, e pensei, mariquices (ou talvez tenha pensado um sinónimo em calão?) à americana. Mas cá estou eu a contar como a fome me ia tirando a fome.
E nada melhor para vergar do que o Porto, onde a dissonância cognitiva fome-prazer de comer atinge o seu auge. Dissonância cognitiva é um fenómeno psicológico que se dá quando albergamos conhecimento, sentimentos ou acções contraditórias em relação a uma realidade: convenço a mulher do meu melhor a amigo a voltar para ele enquanto desejo morder-lhe os ombros. Ou aquilo que se sente no Oceanário de Lisboa, quando se lê um painel informativo sobre a extinção do bacalhau ilustrado com uma bela fotografia de um prato de bolinhos de bacalhau.
Não sei se têm fome, se passaram fome, ou se são mesmo assim. Mas não há terra em Portugal com mais gente com cara de fome do que o Porto. Sobretudo eles, simpatia em carapaças ressequidas, desidratação de hectolitros de álcoois, olhar introspecto, cabelo de barbeiro, em passinhos curtos pela gigante Almirante Reis que é a sempre chuvosa invicta. Era assim quando lá vivi, é assim quando lá torno.
No Aleixo, as emoções contraditórias, em cada garfada de filete de polvo armado com palitos (fruta seca), excelentes, trincáveis, secos (sequinhos), a imaginar o freak show de pobreza à porta da Campanhã. Mastigar a fome que passaram famílias de pescadores de polvos e pescadas, tudo sem pensamentos contrafactuais, sem negação, sem efabulação.
Durante a sopa, é fácil – mesmo para quem teve fome, houve sempre uma sopa. E nas tripas também não custa – dizem que foram inventadas mesmo porque havia fome, durante o (um?) cerco. Mas mesmo na sopa, será pecado repetir a dose? Saborear o azeite? Perceber que as couves são boas? Ser exigente quanto ao sal? Ir ao ponto de tentar perceber quantos dias tem? Que bela sopa – espectacular, como adjectivam tudo no Porto.
Exigir que as tripas sejam sempre como as do Aleixo é uma homenagem ou um insulto a quem teve de comer tripas porque nada mais havia para comer?
E acompanhar os filetes de polvo com arroz de polvo não será novo-riquismo de quem apenas recentemente se libertou da fome?
Um bom cabritinho (bem temperado) e um chispe, para variar.
Nas sobremesas – mea culpa – nunca consigo ir às rabanadas ou à aletria, não vão as minhas sobrinhas começar a perguntar pelo Pai Natal.
Porto é terra de fome e de dinheiro, de iguaria e de pobreza. É um reencontro com sabores radicais, a negação da sofisticação (que é sempre postiça).
No Aleixo, o cimbalino na sala do lado, que no Porto – queixam-se os restauradores – as mesas rodam pouco, os clientes eternizam-se, como se tivessem o time-sharing da mesa por uma noite inteira. Talvez porque ir ao restaurante não seja tão banalizado como em Lisboa
Na dissonância cognitiva, a mente tenta reduzir o ruído, alterando os pensamentos iniciais antagónicos, ou acrescentando novos dados ao problema. E quando descia a ladeira em direcção à Campanhã, ainda com a boca húmida e pegajosa da broa de Avintes, ia pensando, com um sorriso tinto, que aquilo da fome é capaz de não ser bem assim.
Afinal, a fome não tirou a fome. Nem a mim, nem ao senhor da mesa ao lado que explicava a uma Thais brasileira, de pouca roupa e unha muito feita, os diferentes tamanhos da sardinha em Portugal.

Lourenço Viegas

contraprova@gmail.com
www.contra-prova.blogspot.com


Melhor: Sopa, polvo.
Pior:. Arroz de polvo que acompanha os filetes (desnecessário?), não tão bom quanto estes.
Pontuação: **
(Sem estrela - De incomestível a come-se; * - Bom; ** - Muito Bom; *** - Excelente; **** - Excepcional)
Aleixo, Rua da Estação, 216, Porto, 225 370 462, 12h30-14h30, 19h00- 22h00, encerra Domingos e feriados, cartões de débito e crédito, 25€ / pessoa.

Contraprovador

  • Lourenço Viegas, 54 anos, é geólogo e crí­tico gastronómico. Colabora semanalmente na Time Out Lisboa. Nasceu em Lourenço Marques e vive no Ribatejo. Tem duas filhas.
Powered by Blogger
and Blogger Templates