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15.6.07 

M. R. (Copenhaga)

No reino do pão com manteiga

Smørrebrød. Como a guturalidade da referência quase estraga a beleza do referente. Pão com manteiga também não é perfeito – a ausência de palavras compostas, posta naquela preposição, acentua a artificialidade da palavra perante uma coisa tão natural. Pão-com-manteiga.
Dizem que na Dinamarca o Smørrebrød, o pão amanteigado, é o prato nacional. Uma sandocha sem o pão de cima, com muita salada, camarão, salmão. Está tudo dito? Nem por isso.
A começar, logo a começar, pão com manteiga é alimento de grande valia. Se o pão e a manteiga forem bons, ainda melhor. Mas não só. Às vezes, não há nada melhor do que uma carcaça lisboeta, de farinha ultra refinada, com crateras de ar em vez de miolo, unidas por uma camada média de planta ou flora (como eu gostava de saber distingui-las). Em quatro dentadas, uma carcaça partida ao meio, na diagonal, uma primeira dentada muito longa em cada metade, até aos dedos e a flora (ou planta) a sair pelos lados espremida.
Mas no MR, em Copenhaga, uma estrela Michelin, também não era manteiga. Era manteiga, boa, gorda, salgada, misturada com buttermilk e crème fraîche, servida de uma caixa de vidro, com espátula de madeira; pão bom, feito no restaurante, dizem, e aquele creme de manteiga à espera. Uma textura perfeita de creme inglês dos bolos, mas mais amanteigado, a lembrar a planta (ou flora) mas com o sabor da melhor manteiga. E, nisto, um casal de brasileiros, ela muito nova ele muito surdo, que ainda não se tinha apercebido que na mesa do lado a língua era a mesma, ia relembrando quão ecelentxi tinha sido a noite anterior, e ele, numa voz muito cavernosa, de patriarca de telenovela e bigode branco, dizia também ter adorado. Ela gemia com as batatas, que realmente estavam boas – nunca as tinha visto tão pequenas. No fim, explicou ao empregado – impávido – que molhos teria ela escolhido para cada prato. O empregado agradeceu.
Lagostins crus com morangos verdes, natas, gelatina de morango verde – uma desconstrução dos morangos com chantilly que o casal do lado teria preferido no original, no hotel, no jacuzzi. Surpreendente, o efeito do morango verde (por oposição a maduro, cromaticamente branco) como acidulante do lagostim, um pouco à laia de limão, mas mais adstringente, quase sem sabor. Quase, talvez lá ao fundo, no olfacto, um leve toque amorangado. Sim, estava lá.
Espargos com vieiras, bem boas estas, sem o chefe as ter estragado.
Um prato de pato inesperado. Um caldo de pato, língua, coração (ainda?) com sangue no meio, fígado e pele muito tostada, com verbena e as batatinhas minúsculas, aromas siameses, chineses, reconfortantes. Para comer com colher, sorver, misturar ar.
Um rodovalho, no ponto, panado com legumes e ovo meio cru. Havia aqui qualquer prato dinamarquês como referência, mas que a ignorância não me diz qual é.
Nas carnes, um veado que estava bom. Claro que, como a minha avó não cozinhava veado, as referências são poucas, mas a carne mastiga de maneira diferente e mistura bem com os cogumelos – estamos na altura daqueles, jura o empregado.
Havia também, para quem não gostasse do veado, um borrego com legumes. (Na minha vida, há sempre alguém que não gosta de borrego.) Mas deste, era difícil gostar muito, um paladar normal, depressa se esqueceu.
E o serviço, dos melhores a que já assisti. Eficiente, sem ser arrogante, rápido sem ser brusco e com um jovem chefe de sala que sabia de comida: ingredientes, cocções, alergias, temperaturas. E quando o Sarney da mesa do lado queria que ele lhe trouxesse um ruibarbo – justi to see – ele surge da cozinha, thinkpad em punho, fotografia do dito: this is what a rhubarb looks like, sir.
Nem era a melhor sobremesa, a do ruibarbo. Na língua, fica uma mousse de chocolate branco, pinheiro (minúsculas agulhas verdes) e queijo de cabra, faquir esbarronchado na caruma, com umas pepitas que usam na China para panar certos pratos.
Tudo bem feito, numa cozinha minúscula fruto de uma desavença entre os dois mais promissores chefes dinamarqueses, um spin-off do Noma, numa culinária agreste, masculina, que espera que gostem dela, sem fitas nem teatros.
Isto não é cozinha dinamarquesa – apesar da influência, das bases – mas um Laudrup dos tachos, que qualquer equipa da liga dos campeões contrataria.
Afinal, as fronteiras da minha boca, a norte, não acabam em Paris.

Lourenço Viegas

contraprova@gmail.com
www.contra-prova.blogspot.com


Melhor: Cozinha com arestas e um serviço quase ideal.
Pior: O borrego.
Pontuação: **
(Sem estrela - De incomestível a come-se; * - Bom; ** - Muito Bom; *** - Excelente; **** - Excepcional)
M.R. , Kultorvet 5, Copenhaga, +45 33 91 09 49, 18h00- 24h00 (seg. a sáb.), almoço mín. 6 Pax c/ reserva, cartões de débito e crédito, 150€ / pessoa.

Contraprovador

  • Lourenço Viegas, 54 anos, é geólogo e crí­tico gastronómico. Colabora semanalmente na Time Out Lisboa. Nasceu em Lourenço Marques e vive no Ribatejo. Tem duas filhas.
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