Nau do Restelo (3/6)
Lisgoa
Gosto de restaurantes (e de casas e de pessoas) que cheiram a comida. Mãos de refogado agarram-me o coração. Na Nau do Restelo, tresanda mesmo na rua. A caril, dizem os não entendidos, com aquele racismozinho típico do português. Podia enveredar agora por uns parágrafos sobre como, à porta da Nau do Restelo, me lembro das viagens à Índia. Mas não. Em Lisboa, só há um momento em que a Índia me aparece na alma sem eu a chamar – e nunca é com comida. É preciso uma conjugação perfeita de dois factores: uma inspiração profunda simultânea com um arranque bem acelerado de um autocarro da carris. Quando os gases e fumos penetram bem fundo nas narinas, aí sim, é como voltar a Bombaim. Experimente.
É uma sensação estranha, na Nau do Restelo. É como estar no cinema, sentir umas festinhas na perna, aquilo ser quase bom, mas não se ver de onde vêm. Pode ser homem, mulher, criança, bonito, feio, conhecido ou desconhecido. Se ao menos soubesse... É assim na Nau: a comida vai sabendo bem, mas aqui entre nós, o restaurante parece não ter cozinha e tudo salta de uns balcões de inox para um micro-ondas, e daí para tigelas antes de chegar às mesas. É como aquela mão que nós sentimos na perna e que gostávamos de saber o que está no fim do braço, para sabermos se devemos gostar mais um bocadinho.
As chamuças da Nau do Restelo são muito boas (e fogem à banalização que tem transformado as chamuças da maior parte dos restaurantes indianos e goeses nos clepes "chineses", que toda a gente come ritualisticamente).
Um dos mais intrigantes pratos da Nau do Restelo é a cabidela de leitão. Juntando o sangue da mãe e a carne da cria, e servindo suíno, a comida goesa desafia, neste prato, preceitos religiosos e culturais sobre comidas e gemina, na boca, a Mealhada com Panjim. O leitão é sobretudo a parte da pele, não tostada, com gordura agarrada, e umas alcagoitas pretas a boiar. O sabor é bom, mas a textura só para os mais destemidos.
É também complexo o ambotic de cação, com o tomate muito carregado a prender bem o peixe, mas também aqui sou fácil de contentar já que fico sempre surpreendido com a mistura de peixe e os temperos fortes, quando o peixe não foge, dá luta, agarra, neste David-Golias jogado entre os dentes, sobre a língua. O resto da comida é apenas razoável, bem como o arroz. Sarapatel e vindalho fortes, caris médios, com demasiado coco e um balchão agradável.
A decoração é inenarrável, o pior do snack bar de Algés com o pior do hotel de Goa, caravelas, flores de plástico, calendários, um mapa de Goa muito velho sem ser antigo, grades nas janelas, pratos vista alegre colecção museu da marinha.
Nos doces, fique mesmo pela bebinca, saborosa, uniforme. A barreira do gosto ergue-se sempre mais alta nos doces: é complicado gostar – e, claro, apreciar – um doce de grão com textura de pladur e um laddú, bola de golfe de farinha e manteiga cor-de-laranja.
Tudo se esquece com a simpatia dos donos, que conversam e explicam. Tenho sempre vergonha de lhes perguntar, mas diga-me lá aqui uma coisa que eu juro não dizer nada a ninguém, este restaurante não tem cozinha, pois não? É que, parecendo que não, ajudava. Tudo aquecido no micro-ondas dá sempre um ar, um sabor e uma temperatura de pronto-a-comer.
Nau do Restelo
Rua de Pedrouços, 1 (Belém / Pedrouços)
213 020 675
***Razoável
Lourenço Viegas
Time Out, n.º 6, 31 Out. 2007
Gosto de restaurantes (e de casas e de pessoas) que cheiram a comida. Mãos de refogado agarram-me o coração. Na Nau do Restelo, tresanda mesmo na rua. A caril, dizem os não entendidos, com aquele racismozinho típico do português. Podia enveredar agora por uns parágrafos sobre como, à porta da Nau do Restelo, me lembro das viagens à Índia. Mas não. Em Lisboa, só há um momento em que a Índia me aparece na alma sem eu a chamar – e nunca é com comida. É preciso uma conjugação perfeita de dois factores: uma inspiração profunda simultânea com um arranque bem acelerado de um autocarro da carris. Quando os gases e fumos penetram bem fundo nas narinas, aí sim, é como voltar a Bombaim. Experimente.
É uma sensação estranha, na Nau do Restelo. É como estar no cinema, sentir umas festinhas na perna, aquilo ser quase bom, mas não se ver de onde vêm. Pode ser homem, mulher, criança, bonito, feio, conhecido ou desconhecido. Se ao menos soubesse... É assim na Nau: a comida vai sabendo bem, mas aqui entre nós, o restaurante parece não ter cozinha e tudo salta de uns balcões de inox para um micro-ondas, e daí para tigelas antes de chegar às mesas. É como aquela mão que nós sentimos na perna e que gostávamos de saber o que está no fim do braço, para sabermos se devemos gostar mais um bocadinho.
As chamuças da Nau do Restelo são muito boas (e fogem à banalização que tem transformado as chamuças da maior parte dos restaurantes indianos e goeses nos clepes "chineses", que toda a gente come ritualisticamente).
Um dos mais intrigantes pratos da Nau do Restelo é a cabidela de leitão. Juntando o sangue da mãe e a carne da cria, e servindo suíno, a comida goesa desafia, neste prato, preceitos religiosos e culturais sobre comidas e gemina, na boca, a Mealhada com Panjim. O leitão é sobretudo a parte da pele, não tostada, com gordura agarrada, e umas alcagoitas pretas a boiar. O sabor é bom, mas a textura só para os mais destemidos.
É também complexo o ambotic de cação, com o tomate muito carregado a prender bem o peixe, mas também aqui sou fácil de contentar já que fico sempre surpreendido com a mistura de peixe e os temperos fortes, quando o peixe não foge, dá luta, agarra, neste David-Golias jogado entre os dentes, sobre a língua. O resto da comida é apenas razoável, bem como o arroz. Sarapatel e vindalho fortes, caris médios, com demasiado coco e um balchão agradável.
A decoração é inenarrável, o pior do snack bar de Algés com o pior do hotel de Goa, caravelas, flores de plástico, calendários, um mapa de Goa muito velho sem ser antigo, grades nas janelas, pratos vista alegre colecção museu da marinha.
Nos doces, fique mesmo pela bebinca, saborosa, uniforme. A barreira do gosto ergue-se sempre mais alta nos doces: é complicado gostar – e, claro, apreciar – um doce de grão com textura de pladur e um laddú, bola de golfe de farinha e manteiga cor-de-laranja.
Tudo se esquece com a simpatia dos donos, que conversam e explicam. Tenho sempre vergonha de lhes perguntar, mas diga-me lá aqui uma coisa que eu juro não dizer nada a ninguém, este restaurante não tem cozinha, pois não? É que, parecendo que não, ajudava. Tudo aquecido no micro-ondas dá sempre um ar, um sabor e uma temperatura de pronto-a-comer.
Nau do Restelo
Rua de Pedrouços, 1 (Belém / Pedrouços)
213 020 675
***Razoável
Lourenço Viegas
Time Out, n.º 6, 31 Out. 2007