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24.1.08 

Estoril Mandarim - Dim Sum (5/6)

Nexo oral

Um almoço de dim-sum é a alegoria de um casamento feliz. Tudo começa bem, entusiasmo, enlevo, e vai-se comendo e comendo mais e experimentando e descobrindo. Repete-se. Gaba-se. Depois vai-se comendo só, já sem repetir, apenas do que se gosta, e quando damos por nós (dar por si é daqueles bordões que parecem inventados por Heidegger) apodera-se um spleen, quase cheios daquelas bolas que ao princípio julgávamos capazes de comer até à eternidade. É tempo de ficar por ali, adiar a morte, numa velocidade de cruzeiro da satisfação bucal, o matrimónio naquelas cestinhas de bambu vazias e frias. Um contento estranho em que se vai indo.
Os dim-sum são os scones cantoneses. Comida inventada para beber chá que rapidamente suplantou o próprio chá (que, se valesse por si, não se tinha de inventar comida para o acompanhar). São comidos ao pequeno-almoço, ou durante o dia, até às três. Pelo menos é o que dizem.
A minha relação com a comida sempre foi muito oral. É que há quem coma mais com os olhos ou com a alma, mas aqui ainda se usa muito a boca. Prefiro este nexo oral com o ha-kau, ir trincando o redondo puro branco, a auréola da gamba laranja a despontar, o vapor da derme fumegante. Dim-sum é comida mouthful, comida de boca cheia.
Cheong-fan, rolos de farinha de arroz escorregadios (aqui se vê quem sabe comer com pauzinhos e quem os usa só para prender o cabelo), que não devem nunca ser (a dupla negativa tem sempre mais ritmo) cortados com a faca. Os de carne e legumes perfeitamente equilibrados, os de gambas e espargos equilibrados perfeitamente (maus os de lombo de porco assado).
Das chinesices não consigo deixar de preferir o siu-mai, com gambas picadas e cogumelo (o normal é serem de porco), com umas ovas de caranguejo por cima, uma complexidade de sabores, as sete ou oito tonalidades da língua cantonesa, imperceptíveis aos cerosos ouvidos de ribatejano, entre a cavidade bucal e a nasal, que a boca cheia de um dumpling só empurra o ar odorado com mais pressão pelo nariz acima.
Porque isto do dim-sum (evitar comparação com a mulher oriental) é comida delicada demais para não se comer um pouquinho à bruta, o dumpling pegado nos paus, a boca muito aberta, como a empregada de lar que põe o analgésico na velhota moribunda de maneira a que ela não o cuspa, deve ser largado no último terço da língua, lá atrás, a empurrar a glote, o que dá uma produção de saliva suplementar que ajuda a receber o que resulta da explosão do dumpling na boca quando o dente lhe ferra. E que bem que ferra na gamba dura, o cogumelo a dar consistência e as ovas de caranguejo a rebentarem uma a uma, reminiscência das ampolas de óleo de fígado de bacalhau que se dava lá em casa às miúdas.
Poucos adeptos, mas excelente, é o congee (canja de arroz, vá) com vieiras e carne, salpicado de cebolinho e umas lascas de massa crocante. Reconfortante e diferente (como um dia de chuva quente à beira rio).
Experiência mais próxima do pedocanibalismo (ou manocanibalismo?), são as patas de galinha guisadas com molho de soja preta, pegadas pelo pulso, os dedinhos um a um a entrarem na boca e a professora de ciências naturais em fundo a matraquear, falange, falanginha, falangeta, cada uma sugada das cartilagens sucos e peles e depois, já só o osso, projectado da boca ao prato, num gesto muito chinês mas que arranca sempre um Lourenço ponha a mão à frente.
Mais para o doce, uns crocantes de inhame e marisco, surpreendentes como só o inhame consegue (é a utilização destes adjectivos que me afasta da crítica gastronómica tradicional). E nos bolos fritos de nabo chinês (daikon) aquele travo redondo de fermentação do nabo lá atrás, a textura esponjosa e borrachosa a pedir alguma soja (evitar fazer à portuguesa e tingir tudo a preto de soja, "como os chineses", que não fazem assim).
Os empregados bons sem serem perfeitos, o lugar amplo, sempre com chineses da China. É que no Mandarim é tudo verdadeiro. Mesmo os pastéis de nata chineses e o pudim de manga com leite não são uma invenção para os chineses de Telheiras e comem-se mesmo lá para trás do sol posto (apesar de, no caso dos pastéis, apenas desde os anos quarenta).
Respeite as regras e beba chá. Ou então beba tsing tao, cerveja de olhos em bico perfeita para a bocka lusa.
Só são precisas duas coisas. Esquecer-se que está num casino e nunca dizer restaurante chinês. Depois disto, um almoço de dim-sum no restaurante (chinês) no (casino do) Estoril é quase perfeito. Se os vidros estivessem limpos, e se não juntassem ao mar ao fundo uma névoa adicional, talvez tivesse sido quase quase perfeito.


Lourenço Viegas

Mandarim - Casino do Estoril
Dim Sum - só ao almoço
* * * * *Muito Bom

Contraprovador

  • Lourenço Viegas, 54 anos, é geólogo e crí­tico gastronómico. Colabora semanalmente na Time Out Lisboa. Nasceu em Lourenço Marques e vive no Ribatejo. Tem duas filhas.
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