« Home | Sete Pecados Restauracionais » | Mezzaluna 4/6 » | Croissant prensado - Versailles » | Peidan (ovos preservados) » | O melhor bife de Lisboa » | Nau do Restelo (3/6) » | Pastéis de Vila Real (cristas) » | Presuntaria do Tejo (3/6) » | Batatas fritas do Burger King » | Sul (2/6) » 

16.12.07 

Os Courenses (3/6)

O Restaurante-etapa


Tivesse mais tempo livre, dedicava-me à ciência que estuda a mudança de sentido das palavras. Talvez assim compreendesse por que é que há um parti-pris editorial (e social) quanto a qualificação de qualquer coisa como razoável. Razoável não é mau: é acima de medíocre, moderado. E quantas vezes nas nossas vidas o razoável não é tão bom? Mas é também essa a batalha que não podemos perder, a de achar que o razoável apenas por que nos satisfaz é bom. Armando ao kantiano (e de certeza que nos Courenses há pelo menos um empregado chamado Armando), o razoável é o não-mau-em-si, o bom é o não-mau-melhor.
E os Courenses, no bairro de Alvalade, é um restaurante razoável: tem pratos muito bons, outros menos, um serviço honesto e eficiente, tudo a preços razoáveis. É um restaurante camaleão, que bebe os sucos e espíritos do tempo e do espaço. É o bairro numa sala, ou melhor em duas, de vendedores de material (como eu gostava de ser vendedor de material, ponto), empregadas de lojas de roupa que desafiam o tempo e as modas, funcionários públicos de micro-institutos que escapam nos pingos da chuva das reestruturações forçadas no sector (como eu gostava de pertencer a um sector, ponto), senhores daqueles que tratam os empregados pelo nome e a quem uma eterna garrafa de whisky trata pelo nome, daqueles que arrastam indefinidamente as palavras e o final de refeição junto a uma senhora, uma ex-amante por certo, antes de tanto whisky ser o antídoto para os milagres da Pfizer. Os Courenses é o bairro de Alvalade dos pequenitos, miniaturização de um bairro paradoxo, em que toda a gente permanece, mas apenas a tratar de um assunto qualquer.
Sopa razoável, esquecida à primeira, palmada na testa, ai as sopas, trago já. (Momento psicanálise: tentar libertar-me do pensamento recorrente de que um empregado que se esquece das sopas é um ser odioso, que não gosta de sopa por ter sido criado por uma avó que o não obrigava a comer a sopa, não gostas deixa meu filho, comes só o bacalhau, não gostas, pronto a avó frita um bifinho para o menino e não contamos nada à mãe ao fim da tarde). Se for tão bom como o peito de vitela, vale a pena. Suculenta, bem temperada, bem grelhada. Com batata de fatia fina, cortada na grossura certa (que é o ponto acima de batata de pacote) frita um pouco à matroca (umas bem fritas, outras ensopadas – enfim, caseiras).
A feijoada é séria, com um feijão bem escolhido, sem ser perfeito, e as carnes boas e verdadeiras, sem ser a pensar na dra que não gosta de gordura e que precisa de saber o que é que está a comer. Já o bacalhau à minhota que esfiava e não lascava não serve de orgulho a ninguém.
Felizmente o cabrito (ligeiramente aborregado, o que não é mau, mas não é sério) estava saboroso, com tempero prévio e bem cozinhado.
Na lista os olhos adoçam a boca ao lerem "doces regionais". Serão os courenses formigos? Não. É sericaia. É a globalização da doçaria regional. Fronteiras-perdidas da glucose. Mas talvez tivesse sido esse, o da sericaia, o caminho a trilhar. O mil-folhas estava duro sem ser estaladiço, banal, a mousse falsa, o arroz-doce estranho e com icterícia e o bolo-de-bolacha envelhecido. O cabrito e o peito de vitela não merecem estes doces.
São dezasseis euros por pessoa sem vinho. Não é barato nem caro, não é bom nem mau. É razoável. É assim como um hotel de três estrelas, numa paragem de etapa, entre a casa e o destino. Lourenço Viegas


Os Courenses
***Razoável
R. José Duro, n.º 27-D (bairro de Alvalade)
218 473 619



Lourenço Viegas
Time Out, n.º 10, 28 Nov 2007

Contraprovador

  • Lourenço Viegas, 54 anos, é geólogo e crí­tico gastronómico. Colabora semanalmente na Time Out Lisboa. Nasceu em Lourenço Marques e vive no Ribatejo. Tem duas filhas.
Powered by Blogger
and Blogger Templates