« Home | Os Courenses (3/6) » | Sete Pecados Restauracionais » | Mezzaluna 4/6 » | Croissant prensado - Versailles » | Peidan (ovos preservados) » | O melhor bife de Lisboa » | Nau do Restelo (3/6) » | Pastéis de Vila Real (cristas) » | Presuntaria do Tejo (3/6) » | Batatas fritas do Burger King » 

16.12.07 

Porto de Santa Maria (3/6)

Eu queria um Ferrari amarelo

É fácil embirrar com homens com carros ditos carrões, grandes carrões. Têm quase sempre contas bancárias com mais zeros à direita e miúdas ao lado com menos anos em cima. São, normalmente, criançolas – vruum vruuum o meu popó é mai gandi có teu.
Diz-se que é a inveja a falar. Talvez. Mas que há homens com carrões, há. E como a oferta responde à procura, há restaurantes feitos à imagem e semelhança do homem Ferrari.
O homem Ferrari do Porto de Santa Maria é normalmente um ele e uma ela, entediados, que almoçam com o dia pela frente, talvez a semana, sem repararem no que comem, nem no mar lá em baixo, nem nas mesas do lado, nem na conta, nem no cheiro a casa de banho à entrada e à saída, nem nos enfeites de Natal azuis (se o Ferrari é amarelo, o enfeite tem de ser azul), nem nas tostas com uma manteiga que se não é rançosa, fresca também não é.
Na página de internet do restaurante, a mesma que omite a estrela Michelin, lá está um Ferrari amarelo (juro) e o Bill Clinton (que quis que o Jamie Oliver lhe cozinhasse south beach diet...). Será que ele comeu aqueles rissóis (juro), tão famosos e tão banais? Melhor o queijo fresco bem escolhido, leve, boa temperatura. O presunto salgado e de qualidade inferior se calhar não era para comer, era só para ver, como o tão afamado mar aos pés.
Entretanto, lá chega o robalo dos quinze contos o quilo, porque um robalo de quinze contos o quilo não pode voltar a ser um robalo, ponto. Será sempre o robalo de quinze contos o quilo, como a mulher do jogador de futebol que jamais voltará a ser apenas Carla. E logo ao levantarem a crosta de sal – aah fez o casal de estrangeiros da mesa ao lado – se viu que estava muito bom o esguio lobo-do-mar.
Vê-se no brilho da pele, na maneira como fumega a carne, no modo como desliza uma sobre a outra, a pele que vem atrás do talher do cirurgião, como a nata do leite do fervedor da manhã no garfo. E depois no dente, tão bem que trinca a carne de um robalo de quinze contos o quilo; e não era só o efeito elefante-branco do “quando pago mais sabe-me melhor”, é que estava fresco, tenro e rijo, marejado. Tão bom, ao lado de umas batatas bem cozidas, mas demasiado salgadas, bem aparadas, de porte uniforme, a vigiarem um feijão verde bem cozido (ou seja, pouco).
Dourada no pão, empada gigante em que este, saboroso, ganha ao peixe que esfarela ligeiramente (como a dourada era só doze contos o quilo, não vale a pena repetir muito a dourada de doze contos o quilo). Sopa dourada boa (gosto do pão de ló mais rijo). Pêra em vinho, normal.
Também havia tempo pela frente naquela mesa da delegação de um qualquer reino da África francófona à cimeira europáfrica, o PIB em cada pulseira de ouro, o investimento em saúde e escolas em cada chamada de telemóvel, o budget da prevenção da malária naquela carteira dos óculos de crocodilo, jacaré ou lá que é. A verdade, matreirice de soba, é que ninguém os apanhou no robalo de quinze contos o quilo, antes uma carninha para dar forças aos generais de cinco estrelas para irem ouvir o Mugabe.
A propósito de estrelas, o Porto de Santa Maria tem uma estrela Michelin (juro). Lá estava o pneu pendurado, junto a duas folhas ranhosas de licenças camarárias. E isso é o melhor do restaurante: o desprezo com que tratam o pneu da Michelin. O total depende da sorte ao jogo da glória. É que “umas ameijinhas para começar” ou um “marisquinho” são perguntas-armadilha que podem fazer andar muitas casas na conta. Mas o homem do Ferrari amarelo não sabe quanto vai pagar, só sabe que é muito caro. É isso que lhe interessa.
E no carro para casa, a névoa sobre a marginal, robalos voadores de quinze contos o quilo a saltarem da água, e a velha música da Rádio Cidade, eu queria um Ferrari amarelo, eu queria um Ferrari amarelo.

Porto de Santa Maria
Guincho
***Razoável


Lourenço Viegas
Time Out, n.º 12, 12 Dez
2007

Contraprovador

  • Lourenço Viegas, 54 anos, é geólogo e crí­tico gastronómico. Colabora semanalmente na Time Out Lisboa. Nasceu em Lourenço Marques e vive no Ribatejo. Tem duas filhas.
Powered by Blogger
and Blogger Templates