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25.3.08 

Casa da Comida (4/6)

Coma um salário mínimo

Tem três famas: a de ser o restaurante mais caro de Lisboa, a de ser o melhor restaurante de Lisboa e a de ser o maior bluff dos restaurantes de Lisboa.
A primeira fama é também proveito. Muito proveito. São sempre cerca de cem euros por pessoa. Cem euros são vinte contos. Uma mesa de quatro pessoas - um salário mínimo. Num almoço, ou num jantar. Chega a ser obsceno. Mas a obscenidade atrai. Pelo menos a mim.
Quando me entram assim na carteira, torno-me mais exigente com a hotelaria. Não pode haver falhas, pratos retirados antes do tempo, cheiros a casa de banho, toalhas desengomadas (engomado tem um sentido próprio, não é sinónimo de passado a ferro), copos errados, louças do Ikea, empregados parvos, enganos nas contas, reservas não cumpridas, cabelos na sopa, atraso no fornecimento de pão (o Lourenço é um panzeiro, dizia-me uma sogra, ou era uma tia?).
Na Casa da Comida, o serviço é chique a valer. Não sei se a valer os cem euros por pessoa, mas numa semana em que ficámos a saber que em Nova Iorque há prostitutas a mil contos à hora, a bitola mudou. Até é barato. Toalhas engomadas, recantos, decoração sólida e discreta, misto de gentlemen's club com hotel termal. Tudo sem ser serôdio. Ou ter-me-ei aburguesado assim tanto?
Confesso a infantilidade, gosto muito de pratos cobertos com aquelas campânulas de metal (seria prata?), levantadas ao mesmo tempo pelos empregados, num gesto tão peculiar como aquele do flasher que abre a gabardina no jardim público e arqueia o torso para à frente, à toureiro, enquanto elas guinchinham e fogem. Porque são dois gestos que entre a prática e o efeito contêm um silêncio de eterna e apneica contemplação, mas se, no caso da gabardina, se olha para logo deixar de olhar, em repulsa, no das campânulas, há uma ânsia do ver tudo antes do comer e, no meu caso, do snifar dos primos odores, que julgam poder fugir. Já vi levantares de campânula melhores, mas também já vi piores. Está tudo na determinação e compenetração. Tem que provocar um uau, mas não pode ser rápido demais, que não é cera depilatória, tem que se evitar gotículas de vapor condensado a espirrar, correntes de ar, ou mesmo acertar na cabeça dos comensais. E há uma velocidade que constrói o cone de fumos e de odores perfeito, que vai duas vezes abaixo e aos lados antes de subir atrás da campânula – e é aí que se deve inspirar profundamente.
O restaurante é formal, mas vêem-se famílias; é caro, mas vê-se uma mesa de professores (terão ido à manifestação dos ex-reformados e ex-nãoavaliados?), tem gente conhecida, mas tratam bem desconhecidos com mau aspecto.
Quanto à fama de ter a melhor comida de Lisboa e à de não passar de um bluff, nem tanto ao mar nem tanto à terra. Não é a melhor comida de Lisboa, mas todos os pratos comidos estavam entre o bom e o muito bom. Um cabrito honesto, com ampla escolha de cortes (costela, peito e perna), batatas excelentes, ervas frescas; raia agradável e bem-feita, taglione com lavagante, bem encremado e amanteigado, o bicho em doses mais do que generosas. Robalos bons, salmonetes frescos.
Um fígado de pato fresco bem feito, escargots simpáticos (aqui entre nós, um escargot sabe sempre a cocó de vaca alimentada a erva fresca), com aquelas pinças e garfos de ginecologista romano do baixo-Império.
Sobremesas boas e bem feitas, da mousse de requeijão com banana caramelizada esta melhor do aquele.
Mil folhas, que eram só três, com framboesas (um parfait com um coulis de cenoura opuco perfeito). Creme queimado com pepitas de peta zetas brancas por cima, o acidulado de um balsâmico, tudo a fazer barulhinhos lá atrás. A conta. Um ordenado mínimo. Em duas horas.

Casa da Comida
****Bom

Contraprovador

  • Lourenço Viegas, 54 anos, é geólogo e crí­tico gastronómico. Colabora semanalmente na Time Out Lisboa. Nasceu em Lourenço Marques e vive no Ribatejo. Tem duas filhas.
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