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11.6.08 

Can Fabes (6/6)

Santi Subito!

Uma estrela. Papada.
A parte nobre do toucinho do porco. Por debaixo do queixo. Temperada e cozida, em cima de um puré de batata. O porco e a batata, que Deus uniu e o homem não há-de separar. O caviar por cima, mar pela terra adentro. Um prato simples, o prato perfeito. Só pode haver perfeição na simplicidade e é essa a maior lição de Santi Santamaria, que agora um coro de ofendidos finge que não percebe. Recomendam-lhe humildade. Santi cozinha humildade. Há trinta anos.


Duas estrelas. Terra.
Com humildade, Santi Santamaria cozinha a terra. A terra como ela é. A terra próxima, as coisas da terra. Trufas e cogumelos, como ninguém. Trufas e cogumelos saídos da terra e a sabê-la toda de cor (como no poema do O'Neill "sei os teus seios sei-os de cor"). O pioneiro da mistura do peixe com as setas, hoje por todos imitados. Fraca memória a dos cozinheiros vudu e aprendizes de feiticeiro.


Três estrelas. Espaços.
Num prato apenas o que interessa, arrumação Siza-clean, sem lasers, nem fluorescentes, nem arabescos. A comida como ela é. Santi recusa a taveirização da apresentação dos pratos, mesmo que para aí soprem os ventos da moda. A cozinha de Santi é uma cozinha. Não é um laboratório. As cozinhas não são laboratórios. Alquimizar a cozinha faz à gastronomia o que Paulo Coelho fez à literatura.

Quatro estrelas. Polémica.
Estalou polémica de estalo entre os chefes. Ou melhor, entre Santi Santamaria de um lado e os outros todos do outro. Santi quer uma cozinha sem efeitos especiais, sem dopings. Sardinhas sem silicone e vacas sem botox. O bacalhau sabe ao que sabe naquela minúscula empada de Santi e não precisa de injecções de clorofila. É claro que os wannabes estão contra Santi. É mais fácil continuar a atirar espumas coloridas para a boca dos clientes do que levar o jarret de vaca àquele ponto de fundição, de concentração de sabores. A comida como ela só sabe, a comida como só ele sabe.

Cinco estrelas. Atitude
Santi Santamaria é o Bruce Lee da comida, mãos nuas, tronco nú, cercado pelos ninjas de fato preto, dos pozinhos, dos fumos, dos saltos para trás, xamãs da redução de grelos em espuma de caju com atum micro-perfurado em cama de batata andina criopreservada, tudo dentro de um ovo de pardal do monte Fuji. A Santi, basta uma pequena costela de leitão, muito cozinhada e apimentada, catalanização da Bairrada. Santi não mostrou respeitinho pelo estabelecimento, pelos pratos para japoneses fotografarem, pela imprensa anósmica e deslumbrada.


Seis estrelas. A chave.
A cozinha de Santi Santamaria revela o segredo do mistério da transformação da matéria pelo calor. Era a parte que faltava no sms da vida e da cozinha, a chave de tudo, a súmula de muitas críticas, de muitos elogios. O segredo revelado. E afinal, é simples: cozinhar o peixe como se fosse carne e a carne como se fosse peixe. Vou repetir: a carne como se fosse peixe, o peixe como se fosse carne. Sem deixarem de o ser, nem a carne de ser carne, nem o peixe de ser peixe. Puxar o peixe, acarinhar a carne. Levá-los ao outro extremo. Tratar os amigos como se fossem família, a família como amigos. Tocar Bach como se fosse jazz, jazz como se fosse Bach. Depois disto, a boca hiberna numa melancolia de mil e cem quilómetros. Santi subito.

Mil e cem senãos.
Parecendo que não, fazer mil e cem quilómetros para jantar cansa. É que o Can Fabes é lá longe, saindo pela A6, sempre em frente, um pouco antes de chegar a França. Mil e cem quilómetros de distância tornam curtos os anos luz que nos separam. O verdadeiro seis estrelas mais perto de Lisboa.

Lourenço Viegas
Can Fabes

Sant Joan, 6 Sant Celoni (Catalunha, Espanha)
****** Fora de Série


Time Out Lisboa, n.º 37, 11 e Junho de 2008

Contraprovador

  • Lourenço Viegas, 54 anos, é geólogo e crí­tico gastronómico. Colabora semanalmente na Time Out Lisboa. Nasceu em Lourenço Marques e vive no Ribatejo. Tem duas filhas.
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