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30.9.08 

Colina (3/6)

Família e Castigo

A Colina é o restaurante familiar. Familiar, não como conhecido, acolhedor, aconchegado. Familiar, como o restaurante que envolve e mimetiza a família. A família é, sabe-se, uma coisa terrível. Relações especiais de poder, cumplicidades, reino do subjectivismo. É a eira das maiores alegrias e das melhores tragédias. Como a carta da Colina, montanha russa de qualidade, interminável, mais uma volta, mais uma corrida.
É familiar a Colina porque prototipifica a família que deve ser: imutável. Sem padrastos, nem madrastas, nem enteados nem adoptados. Sem evoluções ou retrocessos. Sempre as mesmas pessoas a servirem as mesmas pessoas, devotas mas com arestas, no sítio certo, sem brasileirices.
É familiar a Colina porque está enxameada de famílias. Famílias etariamente diversificadas, lisboetas, abastadas, resistentes ao magnetismo das linhas e dos restelos. Famílias bloco central. Avenidas novas, mentalidades velhas, mas que, ao contrário do restaurante, não resistem a uns segundos e terceiros matrimónios nos escalões intermédios (culpa do 25 de Abril). O avô, já bisavô, senhor Ferreira, engenheiro Teixeira, cumprimentado pelo nome e de bacalhau à porta pelo maitre de carta na mão. A avô, já bisavó, apenas minha senhora, ou e a senhora como tem passado (a que poderia responder, muito mais passado do que futuro (bis), meu caro senhor). A impressão (cravada para sempre pelo Leão da Estrela) de que, entre os maitres dos restaurantes e os esposos-maridos, há cumplicidades de putedos antigos ou, ao menos, de pândegas recentes contrárias às últimas indicações da médica, estimável e filha de um catedrático de medicina, da CUF.
A Colina é o restaurante-castigo. Em que um almoço dura umas férias, mil essemesses, uma bateria inteirinha da pe-esse-pe. O corpo a doer, mais um pouco de aguardente para o avô, mas só um pouco por causa do by-pass. Faz bem ao glaucoma, filha. Mas a diabetes lá vai subir, na tirinha, com aquele pudim, fácil de se gostar, com gelado, numa mistura mais gulosa do que com sentido gastronómico (como batatas com arroz). É esperar que a avó, abastecida a chá durante a semana, não peça mais um leite-creme, bom, e no fim não se esqueça da nota de vinte euros, para depositares no banco, filhinha.
É um castigo, empregados que substituem os pais demitidos de submeter as crias a um largo espectro de sabores, não quer mais arroz de pato, não coma, coma só o chouriço. E quer provar a vitela da avô?
A vitela no forno, pedaços fatiados, tenra, boas batatas (cada vez mais importantes as batatas na carne, que nunca está excelente se estas o não estiverem). Tão boa a vitela, tão mau o rosbife, tenro mas difícil de cortar, a salada russa muito pegada, muito fria (é tão comum o erro de servir gelados os pratos que não são quentes).
O bacalhau com natas bom, o caril mau. Mas quem aqui pede caril é para matar saudades d'áfrica.
A Colina tem vários espaços. Um andar alteado, para gozar de camarote, e uma sala em baixo, acolhedora. Uma mais de estar, outra mais de jantar, mas o sótão da avó é aquela loja (é uma loja?) de garrafas à entrada.
Vivemos uma época de categorizações. E, nesta tendência, a imprensa de restaurantes e gastronómica encheu o cartório de culpas. São os restaurantes de fusão, latinos, internacionais, jovens, experimentais, vegetarianos, saudáveis. Normalmente a categoria falha a essência. Mas que eu perca a língua se houver no Mundo inteiro restaurante que seja mais a família do que aquela Colina na Filipe Folque, freguesia de S. Sebastião da Pedreira – onde nasceu e nasce Lisboa.


Lourenço Viegas

Time Out, 13 de Agosto de 2008

A Colina
Rua Filipe Folque, 46 (São Sebastião da Pedreira).
*** Razoável

Contraprovador

  • Lourenço Viegas, 54 anos, é geólogo e crí­tico gastronómico. Colabora semanalmente na Time Out Lisboa. Nasceu em Lourenço Marques e vive no Ribatejo. Tem duas filhas.
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