« Home | Hospital da Cruz Vermelha (4/6) » | Letter to a tourist » | Coliseu Café (4/6) » | Arraial ZIP ZIP (2/6) » | Can Fabes (6/6) » | Vela Latina (3/6) » | Tentações de Goa (4/6) » | Tachadas (4/6) » | Cenário (2/6) » | Stravaganza (2/6) » 

9.7.08 

Pinóquio (5/6)

A minha primeira vez


Nunca esqueço a minha primeira pinocada. Por mais anos que viva, como diz a malta entrevistada na televisão sobre tragédias que lhes aconteceram. Tenho poucas recordações de primeira vez. A primeira vez que fiz isto ou aquilo, ou está esquecida, ou recordo apenas como ter feito isto ou aquilo. Recordar a primeira vez que se faz uma coisa, como uma primeira vez, é das mais estranhas sensações. Como o primeiro jantar no Pinóquio – o que torna aquele antro verde um restaurante inesquecível.
Primeiro, é mesmo o verde. No interior do Pinóquio, é como viver dentro do verde. Da cor verde. Não aquele verde energético das eco-chachadas, nem o verde carregado da tropa, um verde deslavado, misto de garrafa e de azeitona. Um verde único, triste, pardacento. Um verde que impregna os olhos, a mente, os pratos, o sabor.
Depois, é a azáfama dos serventes e dos servidos. No Pinóquio, há um caos criador, as mesas muito juntas, felizmente. Os estrangeiros ao colo das famílias, as crianças na mesa do grupo de amigos que conta piadas adultas, o casal conservado em laca, juntinho às estrangeiras de atributos muito à mostra a olharem com um ar desconfiado para a santola. As filas à porta, a gincana de chegar à casa de banho, ou cá fora, ou à mesa. Os empregados - uma mistura de broker de Nova Iorque dos anos oitenta com corredor de marcha, desviando a cintura das mesas e cadeiras com a travessa na mão. E são sempre os mesmos, ou pelo menos parece, o careca, o do bigode, o mais magro, etc. Sempre apressados, sem apressarem, sempre.
Há também a comida, claro, quase esquecida, por ser tão óbvia e tão boa. Como sempre o mesmo, mas provo do diferente de quem não come as gambas e o pica-pau. Mar e terra, primeiro ao mar, depois à terra.
Umas gambas cozidas depois salpicadas com sal grosso (vejo agora pela primeira vez o sal que sempre esteve em salpicar) que devem ser comidas à mão (são mistos os meus sentimentos quando vejo alguém comer gambas de garfo e faca, sentimentos tão contraditórios como ao ver cenas no tribunal de Santa Maria da Feira). Chupar bem a cabecinha da gamba suculenta, com algum ruído, impressiona sempre a estrangeirada que sai do hotel e calha ali no Pinóquio sem saberem como, e que acha boçal a sorvedura, mas condescende à laia de muito treinar aquele sorriso multicultural que faz ao marroquino lá na Haia.
E, quando eles já se habituaram e trocam olhares entre si (here we go again, he is going to suck another one...), surpreenda-os com aquele gesto de molhar a pão na piscina de gordura e alho do pica-pau. Enrole com o pulso um bocado de pão e leve à boca entre cada pedaço de carne do lombo, mal passada e tenra. As batatas fritas em rodelas finas, verdadeiras, que se conseguem partir e dobrar na boca em metades.

Na esplanada, evite a mesa ao lado do tabuleiro das amêijoas mijonas, que fazem jus (muito jus) ao nome.
Passar anos a fio nos Restauradores, ver a malta na esplanada, pensamentos sobranceiros, e estava ali à boca de comer. Onde é que eu andava?
Pinóquio *****

Restauradores
Time Out Lisboa n.º41, 9 Julho 08

Contraprovador

  • Lourenço Viegas, 54 anos, é geólogo e crí­tico gastronómico. Colabora semanalmente na Time Out Lisboa. Nasceu em Lourenço Marques e vive no Ribatejo. Tem duas filhas.
Powered by Blogger
and Blogger Templates