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31.12.08 

Kaffehaus (4/6)

Aquário com vista

Escrevi, não me lembro bem onde, que a cozinha ao Norte ganha arestas. Cantos. Vértices. É isso que se sente ao comer o goulash do Kaffeehaus, um café vienense no Chiado. Guisadinho, sem arrozinho. Com um pãozinho, apenas. Reconfortante, com personalidade.
No Kaffeehaus, há arestas, e só dentro de arestas pode haver conforto. Na sala. Nas janelas (rasgadas de alto a baixo). Tudo o que falta para quebrar o perpetuum mobile do quentinho cheio de correntes de ar da portugalidade. São de vidro as paredes que separam o Kaffeehaus do Governo Civil. É ir bebendo uma das cervejas austríacas e reconhecer o Chile que há em nós, naquela parada ininterrupta de forças da ordem. Serão de vidro à prova de bala as fronteiras que põem a Áustria lá tão longe (às vezes tão-longe-tão-perto que os nosso haiderzinhos também preferem formas menos convencionais de familiarizarem)?
Bom pão e uma tábua de queijos, pickles e nozes, tudo muito agradável, excepto um dos queijos, muito frio – e queijo frio é como aquele pingo no pescoço que se desprende do toldo à entrada na loja quente, que ia ser um abrigo mas já não é enquanto o pingo que bateu na espinha não secar.
No Governo Civil, pára um africano vestido com vestes de lá. Pergunta qualquer coisa aos polícias que estão na porta. Respondem-lhe. Ele avança. Riem do traje. Com a mesma bonomia que vão comer presunto a saber a xixi, agora no Natal, quando forem lá acima à terra, o melhor presuntinho do mundo, porque é o da terra e o presunto da minha aldeia é sempre maior do que o mundo. Com a mesma bonomia que olham e comentam as passantes (e que passantes). É esta falta de arestas que nos dá sempre um pib abaixo dos outros.
As arestas são boas no panado (schnitzel) com salada de batata (morna). Enxuto, o panado; sem rodeios a salada de batata. Às vezes apetece um panado. E panados, raramente há – ou há no pão ou são pratos do dia. Aqui há sempre, ao estilo vienense.
Chega ao Governo Civil uma delegação. Perfilam na porta meia dúzia de cargos. Sorriem. Chegam de motorista em renaults. São os interstícios do Estado, funções sem rosto, rostos sem funções. Sorriem. Mais polícias, à civil, talvez por ser o governo civil. Tudo ri.
Daquele aquário de (outra?) civilização, parecem longe, daquela esquina com arestas, as figuras da Rua Garrett que conseguiram fugir de uma tela da Paula Rego mesmo a tempo de nos pintar o Natal.
É, por tudo isto, fácil deslumbrarmo-nos com o Kaffeehaus. Nas mesas, vive uma fauna também deslumbrada, que, mesmo sem perceber, andava faminta de um local com jornais. Arranjadinho. Sem saber às tangas, farsas e embustes com que reconstruíram o Chiado e que um incêndio de costumes tarda em levar. Por isso, aquilo enche e enche e enche. Mas merece.

Lourenço Viegas

Kaffehaus
****Bom
Rua Anchieta, 3 (Chiado). 21 095 6828. Ter a Sáb das 11.00 às 00.00. Fecha segunda
domingo, 21 de Dezembro de 2008

Contraprovador

  • Lourenço Viegas, 54 anos, é geólogo e crí­tico gastronómico. Colabora semanalmente na Time Out Lisboa. Nasceu em Lourenço Marques e vive no Ribatejo. Tem duas filhas.
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