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21.7.09 

Cova Funda (4/5)

Descer para subir

Não há, não pode haver, qualquer justificação para um estabelecimento aberto ao público se chamar Cova Funda. Cova é mau. Funda é pior. Cova é para onde todos vamos (já não é bem assim, agora que pegou moda a incineração). Cova é escondermo-nos. Cova é fossa. Funda é puxar para baixo a cova. Ainda se fosse da Piedade. Do Vapor. Ou Alta. Agora Funda...
Mas, como não há nada que não tenha explicação (ou como a angústia que causa ter no bolso uma coisa sem causa é mais do que suficiente para logo lhe inventar uma), eu acho que sei o que levou os donos daquele simpático restaurante no Bairro dos Actores a chamarem-lhe Cova Funda. Havia na Faculdade uma colega a quem toda a gente chamava a Maria Bexigosa. Ela própria se apresentava assim. Olhando de perto, lá estavam umas nicadas na pele, fósseis de antigas bexigas. Mas o sorriso, os olhos, o respirar, faziam esquecer rapidamente as crateras e o nome. E parecia mais bonita, por ser a Maria Bexigosa.
É, no fundo, marketing, ou branding, ou qualquer coisa acabada em ing. É conseguir descer as expectativas e afastar malta que escolhe os restaurantes pelo nome.
Ou seja, quem vai ao Cova Funda sem saber ao que vai espera o pior. Mas quando desce ao entrar, porque é daquelas coisas em que para subir é preciso descer, desce menos do que julgava que teria que descer para poder comer num restaurante com aquele nome. São poucos degraus.
Lá em baixo, os empregados são daqueles que parecem donos. Com a simpatia profissional de quem sorri em proveito próprio e não de um patrão chato. Na sala, gente conhecida. Não da televisão. Nem dos jornais. Conhecidas dos empregado-donos que ali mandam e uns dos outros. Como está a senhora? E a sua mãezinha?
Há famílias em harmonia. Aliás, se o Miguel Sousa Tavares um dia regressar do Brasil (para onde li que vai viver com a Maria João Pires) e passar pelo Cova Funda, arrisca-se a não achar que, depois de Dachau, o sítio menos agradável para se estar é num restaurante com os filhos dos outros a ladrarem.
Naquela sala de cadeiras de pau, toalhas bem engomadas, chão de mosaico hidráulico, a comida é quase sempre boa. E quase sempre quase toda. É, por isso um restaurante raro, em que arrisco um jogo de roleta-de-óbidos (desporto de azar que consiste em entrar num restaurante ao acaso e escolher um prato à sorte e que deve o seu nome à pitoresca vila portuguesa conhecida por ter, na menor área, o maior número de restaurantes caros e maus).

Peixe fresco, em vitrina, à espera de ser comido por aquela fome de peixe fresco que só há em Lisboa, cozido ou grelhado, escolha de legumes, acompanhado de boas batatas. Carnes honestas, cozido, cabeça de peixe, pica-pau do lombo (mesmo do lombo, tenro de comer à colher).
E as batatas fritas escorridas, caseiras, na cor certa. E se um livro não se pode julgar pela capa, uma batata frita pode julgar-se pelo tom de amarelo.

E o bolo por baixo da cereja é aquela tigela de alumínio onde vem a sopa, deixada no meio da mesa, para nos irmos servindo, num acto de afronta à cultura da unidose sopeira que se tornou dominante na restauração. Poucos gestos são de maior partilha e beleza do que alguém que serve aos outros umas conchas de sopa. Mesmo num sítio chamado Cova Funda.
Lourenço Viegas

Cova Funda - Rua Augusto Machado 3 A/B (Bairro dos Actores)
****
Bom

Contraprovador

  • Lourenço Viegas, 54 anos, é geólogo e crí­tico gastronómico. Colabora semanalmente na Time Out Lisboa. Nasceu em Lourenço Marques e vive no Ribatejo. Tem duas filhas.
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