« Home | Spot Chiado (4/6) » | Na cozinha com Nigella » | Jules (6/6) » | Pessoa (4/6) » | Basmati » | Manuel Caçador (4/6) » | O Madeirense - Amoreiras (2/6) » | Coelho da Rocha (4/6) » | Bénard (2/6) » | Sommer (3/6) » 

21.7.09 

Isaura (3/5)

Na Feira do Livro dos Restaurantes

Há os que partem na frente e há os que ficam para trás. E nada mais há, para além dos dois pólos, na relação de uma coisa com o seu tempo. Os que se adiantam e os que se atrasam. Dessincronias são na cultura as duas únicas formas de relevância. Mas há coisas tramadas: é que num restaurante é mais difícil partir na frente e ainda mais difícil ficar para trás. Para os restaurantes não há memória, porque só há memória. Não há papel, discos, não há vídeos, não há gravadores digitais, não há youtube, não há nada. Só há presente. E o presente, o presente da mediania, é ingrato para quem não alinha nele.

É do Isaura de que falo e da sua laranja com groselha. O Isaura sobrevive. Mas sobrevive com a intensidade que a palavra tem nos obituários ingleses. Sobrevive como a laranja com groselha, inesperada naquela sala sem janelas forrada a garrafas, palco de coreografias que se vão vendo cada vez menos.
O Isaura está para a gastronomia como a Feira do Livro está para a literatura. Sítios onde cumprimos rituais mais do que fazermos aquilo que por lá se faz. Um bacalhau com migas muito forte, muito azeitado, demaziado (com zê). A lembrar que bacalhau não é para meninas (e repare-se na suavidade brutal de meninas junto a bacalhau, conseguindo ao mesmo tempo homofobia e misoginia).
Nestes sítios para além do tempo há que saber ir, não cair lá de chofre, como aqueles namorados alemães que olhavam incrédulos para as bancas da Feira do Livro, para a cara de frete dos vendedores dos barracões (que só sorriem quando dizem “ah queria esse livro? Pois esse não veio [para a feira, subentende-se]), para os casais deprimidos de escritores frustrados, parque acima e parque abaixo, com olhares esbugalhados, radares que varrem e sorvem trezentos e sessenta graus, na espera de uma aparência de reconhecimento.
No Isaura é ir directo às pataniscas, pequenas e bojudas, numa forma difícil de descrever que não seja testicular. E comê-las com a mão, mas sem ninguém ver, que ali, como na Feira do Livro, é normal olhar-se uns para os outros.
Cuidado, não caia nos bifes, castigados, castigados, castigados (a não ser que seja, como o embarcado da anedota, que pedia à prostituta que lhe fizesse uma certa e determinada coisa, mas o mais mal feito possível, não por não por lhe apetecer aquilo, mas apenas por estar com saudades da mulher).
É comida de hotel antigo, o melão com presunto a abrir, a laranja com groselha a fechar. Coreografias bem ensaiadas, mesas junto às paredes.
Diz quem sabe, que o Isaura tem a melhor garrafeira e o melhor escanção de Lisboa. E parece ter. E nisto dos vinhos, o que parece é.
Na carta do Isaura, uma adaptação à crise, “dez por dez”, dez pratos por dez euros. Smart move. A crise de quem vai ao Isaura é, claro está, uma crise psicológica e portanto nada melhor do que um remédio psicológico.
É como a laranja com groselha, que parece uma coisa de outrora (nisto da culinária normalmente o que parece não é) e que nos faz sentir bem mesmo depois de emergirmos à rua.
Lourenço Viegas

Isaura - Av. de Paris
*** Razoável

Contraprovador

  • Lourenço Viegas, 54 anos, é geólogo e crí­tico gastronómico. Colabora semanalmente na Time Out Lisboa. Nasceu em Lourenço Marques e vive no Ribatejo. Tem duas filhas.
Powered by Blogger
and Blogger Templates