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4.5.09 

Pessoa (4/6)

Se eu fosse um copinho de Flan

A infância marca. Por mais que se diga que não e tal, marca. E a matéria das comidinhas marca especialmente: das madalenas do Proust, à comida estragada da mãe da Ruth Reichl, todos vão lá ter. Claro que já há praí quem se distancie destes memorialismo familiar e diga que faz percurso na gastronomia sem o mapa dos sabores de infância. Postas de pescada. Também tive um cunhado que cegou aos trinta anos e dizia que era igual ver ou não ver. Até que se matou.Acho que há duas infâncias gastronómicas, paralelas. A da comida, e a dos restaurantes. E nem sempre se cruzam. Duas escolas paralelas, uma bigamia que começa cedo. E depois, discute-se (ou seja, penso) muito, qual delas é a mais importante, a da comida em casa, ou a da comida fora. Não sei.Mas talvez sejam os restaurantes. Por exemplo, a “antiga casa Pessoa”, ali na esquina da R. de Santa Justa, é na minha pasta gastronómica, álbum dos sabores, um ficheiro enorme, daqueles jpegs de scanner com muitos megas, de uma definição enorme (talvez demasiado grande). Um colosso objectivo que extrema o subjectivismo da opinião. Era vir a Lisboa. Era ir “ao” Restaurante.E as coisas são sempre da mesma maneira.Um cocktail de camarão mais fresco e mais brando do que o normal, também menos frio, menos aguado. Um bom equilíbrio, uma funda memória, um sorriso hoje na mesa quando o peço. Acho que já há uma geração que associa cocktail de camarão a uma bebida exótica, um shot róseo, ou uma coisa assim.Depois uns filetes de pescada, altos, lascantes, uma carapaça boa e escura (mais grossa e um pouco mais escura do que prefiro na realidade – sim porque este restaurante está na linha da memória, não na linha da realidade). Com um arroz atomatado, seco e solto, rafado, espalhado. Um belo esparregado, verdedeiro (com três “es”, de verde, caso os escrupulosos editores da revista decidam passar verdedeiro a verdadeiro), sem aquelas raias ou grumos de farinha diluída que são a base da maioria dos esparregados (dizia sempre o meu pai que os restaurantes de Lisboa fazem o esparregado com a relva que compram aos jardineiros da Câmara, numa eco-candonga centenária – e ainda não ouvi ninguém desmentir).Depois, já sem fome, uns panados, por tradição, porque já bastava o que foi e o que se segue. Mas é tão difícil não querer os panados. Como uma área de serviço em que sempre se parou, e que se volta a parar, mesmo sem se necessitar de pôr gasolina, tirar xixi, ou meter café.E no fim o pudm flan de copinho. Gosto pouco ou mesmo nada de objectos, mas dos poucos que me caem no goto é o copinho de flan, de alumínio riscado, amolgado, leve, nicado, que enforma há décadas, todos os dias, um flan diferente, e ali fica na montra à espera que a mão de um empregado, mecânica, com uma robustez terna, lhe pegue, o vire para o prato de um cliente saudosista e o ponha de lado, para no outro dia ser cheio e refrigerado e montrado e virado.Uma questão fundamental, a questão fundamental, foi posta por Ruy Belo, “onde estarei eu hoje em pequeno?”. No Pessoa.

Restaurante Pessoa
Rua dos Douradoures 190
Bom ****

Contraprovador

  • Lourenço Viegas, 54 anos, é geólogo e crí­tico gastronómico. Colabora semanalmente na Time Out Lisboa. Nasceu em Lourenço Marques e vive no Ribatejo. Tem duas filhas.
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