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20.2.09 

Manuel Caçador (4/6)

O escondarijo

O Manuel Caçador é o caixote do lixo do Michel Roux Jr. "Uma cabeça de peixe num caixote do lixo faz-me chorar" disse o Michel Roux Jr, do Le Gavroche (Londres), há uns dias, ao Telegraph, queixando-se da falta de sensibilidade dos jovens cozinheiros.
Tem toda a razão, o rapaz. Num mundo de esquisitinhos e desperdício vai sendo difícil quem goste de extremidades. Patas de galinha, cabeças de peixe, cristas de galo, pés de carneiro, rabos de boi, enchem os caixotes do lixo.Como uma cabeça de garoupa há poucas coisas no mundo. Talvez uma cabeça de pargo.
O modo como eu vejo uma refeição perfeita assemelha-se, já o tenho escrito várias vezes (e falha-me a criatividade para mudar o exemplo), a um comboio de alta velocidade na planície. Tem que haver evolução na continuidade. Consistência irradiante. Coerência dinâmica. Por exemplo, um bom bife é bom, mas não irradia; bom caviar irradia, mas não é consistente. Bacalhau à Brás é coerente, mas não é dinâmico; arroz de marisco é dinâmico mas não é coerente. E por aí fora.
A cabeça de peixe tem tudo. Da extremidade do corte à ponta do lábio os sabores evoluem, pedem ao cirurgião canibal (peixibal) que vá avançando, que vá experimentando. E de olhos fechados sabemos onde estamos: na almofada carnuda do colarinho (nacos que abrem o caminho, como um troço de cidade antes da velocidade máxima, na viagem de comboio), depois junto à espinha, lombos em agulha transversais ao crâneo; as bochechas em disco ou amígdala que saltam deslizantes da sua cavidade com a graça que antecede a entrega. Depois, começam as gelatinas: a língua e o freio que a prende; as cartilagens em volta, lipoaspiração bucal. Pensar que tudo começou com uns nacos de peixe normal e já aqui vamos em sabores intrincados e untosos. Uma carcaça no meio da travessa, estátua de um respeitoso poder do homem sobre o bicho. E é na busca de tudo isto que todos andamos.
Por exemplo, os enófilos dizem que um bom vinho evolui durante uma refeição (o que é o mesmo que dizer que o assento de um bom carro evolui durante uma viagem...); os matrimoniófilos dizem que as metades evoluem juntas durante a relação (em termos de aritmética, devíamos abandonar a visão paritária e ir para a dos terços: em vez de a minha metade, diríamos o meu outro terço, ou os meus dois terços, conforme o caso, e andaríamos menos enganados). Se poucas coisas evoluem como uma cabeça de peixe, nenhuma termina com o prazer do olho, do toucinho em volta, graal de sucos estranhos.
Comer uma cabeça de peixe é quase independente do restaurante (os restaurantes de cabeça de peixe são isomorfos). Escondidos, numa sala banal de janelas em fresta numa Lisboa de fim do mundo (que podia ser Abrantes ou Badajoz), com babetes, uma seita estranha, heterogénea, que almoça orgiasticamente, sem horários, esconde-se por trás de um nome, Manuel Caçador, assim cunhado para enganar quem passa.

P.S – No Manuel Caçador, há também comida normal boa (nalguns casos razoável), sobremesas apetitosas e petiscos variados.

Manuel Caçador (Areeiro)
****bom

Contraprovador

  • Lourenço Viegas, 54 anos, é geólogo e crí­tico gastronómico. Colabora semanalmente na Time Out Lisboa. Nasceu em Lourenço Marques e vive no Ribatejo. Tem duas filhas.
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