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4.8.09 

Uma espécie de chinês (4/5)

Ela insistiu. Tinham-lhe falado e eu ia adorar. Era um restaurante mas não era um restaurante. Era numa rua da Mouraria mas não era bem na rua (era num primeiro ou segundo andar). Era um restaurante chinês sem ser um restaurante chinês. Eu disse que não tinha interesse, que só a palavra Mouraria soava a mijo de gato. Mas ela insistiu. E quando uma mulher insiste, ou se resiste, ou se desiste (e tão curta a diferença do r para o d), e as resistências geram demasiado calor e energia para o estio que se atravessa. Lá fomos. Carro no parque de estacionamento do Martim Moniz. A luz límpida de Lisboa, que é tão rara no alto Verão, tornava tudo mais legível (“o Verão torna as cidades mais legíveis”, Carlos de Oliveira num poema qualquer).
Ela queria conversa. Fui-lhe dizendo que me estava a repetir, mas que para mim os restaurantes são as amantes dos homens sérios. Foi talvez por isso que fui. Ainda lhe disse que a relação que temos com os restaurantes (muito mais do que com a comida) vai-se parecendo à maneira como encaramos o sexo. Há quem não coma fora, quem tenha deixado de comer. Há quem coma mais, quem coma menos. Há quem vá ao sábado (há mesmo quem vá a todo o santo sábado), quem prefira à semana (à semana...). Há quem vá sempre ao mesmo, quem varie (é campo basto para a metáfora e paráfrase brejeiras). E eu com a idade, vou perdendo o interesse pelos mesasutras, restaurantes com complicação, caças ao tesouro para as melhores amêijoas, no meio da serra da Gardunha, num tasco infecto que só serve amêijoas, quando há, mas que é do melhor, disse-me o cunhado da minha prima que vai lá todos os anos, 300 quilómetros só para comer as amêijoas.
Ela estava impaciente. Umas ruas esquerda, direita, drogados, mijo de gato, uma Lisboa que permanece, Pompeia viva, um prédio, limpo, escadas uma porta aberta. Chineses por todo o lado. Sorrisos. Afinal não era um verdadeiro restaurante chinês. Várias salas. Uma ementa numa mica de plástico amarrotado, escrita num português de Ferreira Leite. Tsing taos na mesa. Uma cerveja boa para o calor. Uma escolha ao calhas. Carne de porco com um molho chinês, dumplings de camarão (não tinham a perfeição estética dos congelados). Tudo bom. Mas difícil de dizer se por estarmos numa China com vista para Lisboa, se por ser realmente bom.
Depois, línguas de pato. Era impossível não comer as línguas de pato. Desde pequeno que me dizem que o jantar é línguas de perguntador. Línguas de pato deve ser o mais parecido com línguas de perguntador. Maiores do que um pinhão, boas, saborosas, com um pó de sal e tempero chinês (seria five spice?). Um rodela de limão. Muito agradável. A gordura, o crocante, o sal, o limão. A senhora ria muito. Narizes grandes a comer língua de pato...
Ventoinhas, pauzinhos de madeira, difíceis de separar, bons arrozes, boas sopas. Alguns ocidentais. Muitos chineses. O crítico de restaurantes é um oncologista. Poucas notícias boas num mar de desgraças. Há em todos os restaurantes um dur désir de durer (P. Éluard). Em todos menos neste restaurante chinês da Rua da Guia, que pode durar, ou não durar. Um restaurante que será onde se reunirem aquelas pessoas, com aquela comida.
Lourenço Viegas

Restaurante Chinês da Rua da Guia (Mouraria)
Lisboa

Contraprovador

  • Lourenço Viegas, 54 anos, é geólogo e crí­tico gastronómico. Colabora semanalmente na Time Out Lisboa. Nasceu em Lourenço Marques e vive no Ribatejo. Tem duas filhas.
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