« Home | Fortaleza do Guincho (5/5) » | Cantinho das Freiras (3/5) » | Brasserie Flo (3/5) » | Uma espécie de chinês (4/5) » | Casa México (2/5) » | Chamuças (Ali kebab house) » | Cova Funda (4/5) » | Taberna Ideal (4/5) » | Casanostra (5/5) » | Zaafran (3/5) » 

22.12.09 

Casa da Comida (4/5)

O pior de estar quase a chegar o fim do ano é também estar quase a chegar o fim de ano. Se houvesse fim do ano sem fim de ano, era só fim sem dano. Mas se o criador queria, deu-a mesmo, neste loucura de dois feriados, um Natal e um fim de ano, que matam num mês o que ele devia ser. E os restaurantes também sofrem de jantares de Natal da empresa, da ex e da tia dela, da festa da escola ao jantar do escol. Fazem dinheiro. Mas é complicado ter-se uma refeição tranquila.
Mesmo assim, a Casa da Comida continua a ser um bom abrigo. Um abrigo estranho, cada vez mais completo, mas cada vez mais complexo. Já não é só um restaurante clássico, sólido, chique. Além das pratas, tem pratos. Fluem-se as fronteiras, perde-se exactidão. A exactidão já não é o que era. Um exemplo, antes de voltarmos à Casa da Comida: 2009 é o ano em que acabou a saia. Hoje tudo é pernas, e os collants são calças e as calças collants e a saia só lá está a fazer de papel de embrulho. E isto é bom ou é mau? A casa da comida deve ser o bacalhau e o empadão, ou deve ser a comida nova de Bertílio Gomes que agora por lá se serve? Deve tentar ser os dois?
Começa com uma entrada do chef boa: bola de queijo de Arraiolos e maçã, copo de castanhas, cogumelos e natas, e, por fim, uma morcela e mousse de favas, da esquerda para a direita, em crescendo de intensidade e de interesse. Um aviso de que vem aí comida séria (no menu de degustação de 50 euros).
A terrina de foie-gras com figo deve ser comida nas tostas que trazem para a mesa, belíssimas e banais, a lembrar hotel de termas, em termos, finas, triangulares.
O fígado untuoso, fresco em idade, numa boa temperatura (mais fresco do que o ambiente, mas sem gelar a boca) estava excelente em sabor. Tenho dúvidas quanto à ligação com o queijo de figo, a erva-doce a bayardizar o sabor, o doce a sobre-impor-se (mas são feridas antigas, abertas no meu palato, isto de saber se o fígado liga bem com doce, e achar que não, que são mariquices inventadas pelos donos dos sauternes).
Mas a garoupa, essa não deixou dúvidas: cupeta de ibérico (duas fatias finas fritas e estaladiças do que parecia ser um paio de porco) em cima de um generoso pedaço de garoupa fresca, molhada, ainda rija, mareada, com ervilhas no ponto, tudo servido em cima de um caldo de ervilha, verde num sabor misto de água e terra. A surpresa em culinária tem sempre uma mãe complexa, a criatividade do chef que apanha na curva a ignorância do crítico, que o deixa sem referências para aquele prato. E isso é um sintoma de hoje. Para Calvino (o Italo), a praga que atinge a nossa era passa pelo “embotar da expressividade, extinguindo a faísca que se solta do embate das palavras com as circunstâncias novas”. Também na culinária, pouco do que é novo faz soltar esta faísca (muitas vezes, o novo é apenas a faísca, sem a substância, é o efeito forçado de causa nenhuma). Mas aqui havia substância, novel combinação (que, repita-se, vai sempre beber um pouco da ignorância do comensal) e, portanto, faísca.
Também faísca na muito boa a cavala “fumada” feita dentro de uma cataplana, em cima de uma pedra, com fumos de ervas aromáticas aquecidas que infundem o filete (sem ficar demasiado presente um travo a banho turco), e que desce ao prato para uma espuma e uns grânulos estaladiços de pão e um belo feijão tipo frade.
A bochecha de vaca feita em vinho tinto estava interessante, profunda, mas demasiado feita (textura homogeneizada, a aproximar-se da textura de língua). Sobremesa de frutos vermelhos e merengue doce, mas com demasiadas ideias num único prato.
A sala é requintada e o requinte é sempre coisa que atrai e afasta, como a própria palavra requinte e os usos que dela se fazem.
O serviço é simpático e eficiente, português da velha guarda. Os empregados têm uma ideia apenas superficial do menu de degustação (que já agora, custa 50 euros), e esquecem-se de explicar os pratos.
A cozinha de Bertílio Gomes continua a ser uma cozinha substancial, pensada, com faíscas conceptuais. Bertílio não precisa do fogo preso que tanto ilumina (cegando) os gastrólogos de serviço. Talvez precise de um restaurante só seu, com empregados que lhe conheçam a comida. Um restaurante em que a sua cozinha não seja os collants que expulsam a saia e ainda têm de conviver com ela.
Lourenço Viegas

Casa da Comida
Travessa das Amoreiras, 1

Contraprovador

  • Lourenço Viegas, 54 anos, é geólogo e crí­tico gastronómico. Colabora semanalmente na Time Out Lisboa. Nasceu em Lourenço Marques e vive no Ribatejo. Tem duas filhas.
Powered by Blogger
and Blogger Templates