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23.2.10 

Alma (4/5)

Há duas coisas que admiro no Salazar. Uma é nunca se ter casado. Outra é ter passado à história como um livrinho de citações, daqueles que se encontram junto à caixa das livrarias. Disse: “estudar com dúvida para realizar com fé” (naquele falsetto-beirão). Na culinária, a dúvida do estudo, as horas de treino e as tentativas falhadas sentem-se muitas vezes na boca. E – isto percebi há pouco – o estudo do chefe pode sentir-se na virtude, como no erro. A cozinha de Henrique Sá Pessoa, no Alma, é uma cozinha de trabalho, com ligeiras falhas que lhe dão alma (um feijão mal cozido) e muitas virtudes que lhe dão corpo.
Porque estamos na Quaresma, é bom lembrar que o melhor de tudo é a paixão (talvez por isso o outro nunca tenha, em termos de mulherio, passado da dúvida do estudo à fé da realização) e por isso não há Dr. Phil que não aconselhe o casal a redescobrir a paixão (eu acrescentaria, prudentemente, dentro do próprio casal). Ora, é isso que faz o estaladiço de queijo de cabra com cebola roxa que, lembrando que o melhor do estaladiço é o estaladiço, não vem um estaladiço mas vários estaladiços, aumentando assim a proporção da massa (em sentido pasteleiro e não físico--quântico) em relação ao queijo.
Depois, o leitão confitado a baixa temperatura (em rolo), com um cilindro cor-de-laranja de batata-doce (mas que sabia também a abóbora), couve bok choi e uma redução forte. É um excelente prato. O leitão ganha volume no rolo, sem desunião com a pele estaladiça. A couve bok choi, que normalmente está nas ementas apenas pelo nome (duvida?) e que é dos legumes o suplemento de transportes do Público, tem aqui uma função de falso-equilíbrio. É o verde num prato laranja, que hoje todos os pratos têm de ter verdes como toda a americana tem um piercing no umbigo, mas um verde que não estraga. É uma falsa couve, que não sabe a couve, que se trinca, que absorve o molho e que dá uma boa textura ao prato. A couve é a crosta da batata doce. É um prato forte. Não pensem as senhoras que não gostam de leitão que este leitão sabe a pato, porque não sabe. E não é porque o chef tem pinta, nem porque há uma nuvem de algodão doce enorme pendurada no tecto da sala, e porque a Nini ama o Alma, que a Mealhada fica mais Estoril.
A lasanha aberta com vitela desfiada e queijo taleggio é um belo guisadinho (lasanha aberta é uma contradição nos termos, mas é melhor do que a comprimida, feita no prato de louça que lhe dá originariamente o nome). Uma surpresa, redonda, conchavada, profunda, a carne tenra, a massa no ponto, o queijo a unir, um prato de Outono que aguenta todo o Inverno. No Alma, a única coisa que não se aguenta são os ares dos empregados (excepto um). Mas será que já vêm assim? Ou dão-lhes formação para parecerem enjoados, com uma passividade agressiva, monocórdicos, sobrancelhas franzidas, a servirem a água com a brutidão de quem apaga um fogo num sofá inflamável onde caiu uma beata acesa?...
Pesporrência de libré, que a clientela subserviente (literalmente) aceita, uma parte porque acha que é muito difícil conseguir mesa no Alma e acha que nos restaurantes bons deve ser mesmo assim, outra parte porque tem vergonha de volta e meia ainda pensar que o que era preciso era um Salazar para endireitar isto tudo. O chef ajudaria se, quando desce à sala, cumprimentasse todas as mesas, sem preferidos e enteados. Nisto tudo, lá se vai uma estrela. Mas sem ressentimentos, que as sobremesas e o preço justo deixam a boca quente e a alma apaziguada com um restaurante por vezes demasiado humano.
Lourenço Viegas

Alma
Calçada Marquês de Abrantes, 92 (Santos)
Lisboa

Contraprovador

  • Lourenço Viegas, 54 anos, é geólogo e crí­tico gastronómico. Colabora semanalmente na Time Out Lisboa. Nasceu em Lourenço Marques e vive no Ribatejo. Tem duas filhas.
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