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2.2.10 

Feitoria (5/5)

Há formas opostas de se perguntar a mesma coisa. Nos restaurantes, o que elas mais perguntam (além de se já conheço o sushi alentejano ou outra parvoíce do género) é como é que eu sei se um restaurante é bom. A pergunta é imbecil. Mas quando saíamos da Feitoria, no Hotel Altis Belém Spa (todos os hotéis são spa), esta ela, que até aí não tinha perguntado nada, disse não percebo por que é que o Lourenço agora adora estes sítios que não falham. Perguntou sem perguntar, saltando a pergunta e a resposta. A comida do chef Cordeiro tem poucas ou nenhumas falhas. Concepções testadas, execuções perfeitas. E ela percebeu isso. O que ela não percebeu é se íamos tantas vezes ao Feitoria por ser boa, ou à espera de que falhasse (omissão voluntária de pronome marca a ambiguidade da frase).
Vieira em cima de um carpaccio da mesma, num blini espesso, ovas, flores, pequenas ervas, tudo montado num prato de xisto preto, aqui uma base perfeita para uma pirâmide de sabores. Pirâmide não apenas como imagem barata para descrever o volume da coisa, mas sobretudo por ser um prato piramidal no que toca aos diferentes sabores, às temperaturas, ao sal, ao cozinhado e ao fresco, à intensidade.
O salmonete com espargos, foie-gras e lingueirão nunca falha. O fígado na continuidade daquele sabor que só o salmonete sabe. O espargo a dar textura e também a permitir rememorar, depois no xixizinho, de onde é que vem este cheiro, ah é daquele belo salmonete.
Peixe-galo em beurre noisette, spätzle de espinafres e amêijoa, tomate cereja e acelga, com a manteiga tostadinha a ir buscar o melhor do peixe, com os mareados protegidos pelo espinafre e amêijoa. Estes vinham num spätzle, que é uma pasta de ovo do sul da Alemanha, aqui servidos em forma rectangular e espalmados (o normal são uns cilindros muito toscos) É, eu sei que não deviam dizer-se as coisas assim, que devia diluir tudo nos elogios ao serviço, mas não é do serviço que quero falar – que é bom, que é sorridente, que tem aquela descontracção plebeia de quem sabe que a comida é boa e não leva a sério a cagança de alguns dos comensais –, é mesmo dela. No Feitoria, se tivermos sorte com os turnos, se tivermos sorte com a mesa, trabalha uma das mulheres mais bonitas ponto. Serena, distinta, de rabo-de-cavalo. Não ri, sorri. Não anda, desliza. Não mostra, esconde. E foi das últimas vezes que a vi a ela (que ela a nós olha-nos sem nos ver) que a coisa fez sentido. A Feitoria, nome-conceito de arquitecto de interiores, com aquele painel namban, ou qualquer coisa do género, a puxada revivalista ao mundo português (ah, o poder, ah, a glória), o chef Cordeiro a ter de enfiar nos pratos elementos-império, o café de Timor e mais não sei o quê, tudo aquilo foi perdoado, com a Tanegashima connection. Aquela geisha vale termos levado a pólvora ao Japão.
Também ela é viciante, sem alaridos, sem falhas, que até chateia, como a cozinha do chef Cordeiro a que dá o seu mover brando e piadoso. Nos restaurantes, como nas mulheres, o que atrai é o que repele, com uns anos de intervalo. A vantagem dos restaurantes sobre as mulheres é que raramente se frequenta um restaurante o tempo de uma mulher e por isso espero continuar a comer o Chef Cordeiro (bota salvo seja nisso) sem que tanta perfeição me enfarte.
Lourenço Viegas

Feitoria
Doca Bom Sucesso (Hotel Altis Belém)
Lisboa

Contraprovador

  • Lourenço Viegas, 54 anos, é geólogo e crí­tico gastronómico. Colabora semanalmente na Time Out Lisboa. Nasceu em Lourenço Marques e vive no Ribatejo. Tem duas filhas.
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